A teus pés
Ana Cristina César
Nos anos 1980, temos uma reedição da autodepreciação medieval e realista. Na Idade Média, “Tu és pó e ao pó voltarás”; no Realismo, ninguém é perfeito; nos anos 1980, “Deus morreu, Marx também e eu não estou bem”.
Na literatura do fim do século vinte, encontramos um sujeito “lambendo suas feridas”, distante do protagonismo. Os “Morangos Mofados”, do Caio Fernando de Abreu, e “A teus pés”, da Ana Cristina César, publicados em 1982, participam da caracterização de um período marcado pela solidão e pelo sofrimento provocados pela marginalização.
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:
Ana Cristina não recebe o convite para a vida. Seu eu se percebe menor que a literatura e o corpo. O eu lírico desexiste diante de uma folha em branco, de uma cama limpa. Tudo - além de mim, depois da minha pele - tem sentido, tem razões para existir.
ESTE LIVRO
Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz
Do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.
Tenho uma história para este poema: Ana Cristina leu uma crítica a respeito dos seus poemas e não se conteve, disse: meu filho, o que eu escrevo não é automatismo, não é um empilhamento de palavras, é um improviso, sim, mas é um improviso que tem alma, “é jazz do coração”, é um produto para ser degustado a dois, “um tea for two”, um punhal com dois gumes: a poeta e o leitor. Escrevo minhas verdades seduzida por quem as quer ler, escrevo-as como que corre a toda velocidade encantada pelo voo, sem se importar com perigos. Você que reduziu minha poesia a um produto do automatismo, “enfie a carapuça”, este poema é pra você. Fiz de mim o bagaço para extrair meu açúcar. Meu lamento é meu canto. Não tenho respostas, mas tenho perguntas. Não tenho a alegria, mas não desprezo a dor.
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
O indivíduo é pequeno para conter e organizar todas as percepções. As imagens mais difíceis, os sons menos amistosos, os cheiros mais desagradáveis, os sabores menos gentis e as impressões táteis mais violentas não se ajustam, não deixam o eu lírico dormir, em paz.
O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, ah, tão presa!
Esses mosquitos que não largam!
Minhas saudades ensurdecidas por cigarras!
O que faço aqui no campo declamando
aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa,
e agora não sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
– agora sou profissional.
“Os acontecimentos biográficos”, a própria história é pesada demais para Ana Cristina (“saudades ensurdecidas por cigarras”). Ninguém sentiu tanta saudade quanto o povo português: “Oh, Mar! Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?” (Fernando Pessoa). As saudades (“estou sentida e portuguesa”) atormentam a poeta, tanto que a fragilizam (“não sou mais severa e ríspida”). Perde o respeito por si mesma, faz o que tem de ser feito (“– agora sou profissional).
Segunda história rápida sobre a felicidade –
descendo a colina ao escurecer – meu amor ficou longe,
com seu ar de não ter dúvida, e dizia: meus pais...
– não posso mais duvidar dos meus passinhos,
neste sítio – você agora fala até mais baixo,
delicada, que eu reparo mais que os outros
depois de um tempo fora – é como voltar e achar as
crianças crescidas, e sentar na varanda para trocar
pensamentos e memórias de um tempo que passou –
mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto)
ainda havia ares de mistério – agora, é agora,
descendo esta colina, sem nenhum, que eu conto então
do amor distante, e não imito a minha nostalgia,
mas a delicadeza, a sua, assim feliz.
Ana Cristina César fragmenta em busca da desfragmentação. Quer conhecer os pedaços para entender o todo. Tocar os retalhos de sua existência para sobreviver com alguma poesia. O eu lírico precisa de algum prazer, mesmo que seja o prazer com o estado de outra pessoa (“não imito a minha nostalgia, mas a delicadeza, a sua, assim feliz”), para sobreviver psicologicamente.
MOCIDADE INDEPENDENTE
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei
pra cima sem medir mais as consequências.
Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse
para a pequena audiência de serão?
Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares,
sem uma graça atravessando o Estado de São Paulo,
de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão.
Para o poeta Armando Freitas Filho, amigo de Ana Cristina, César “queria pegar o pássaro sem interromper o seu voo”. Segundo a poeta, tudo que é inédito é profético, porque o tempo não recua nem volta. É sempre daqui pra diante com mais isso tudo que fizemos. Por isso, quando nos limitamos, quando nos proibimos, censuramos, reprimimos, deixamos de ser proféticos: “Por que recusamos ser proféticas?”.