contos
palavras e lavras
Linhas tortas
Na aldeia, o calor crescia já acima dos quarenta graus. Mamede tirava de algumas caixas a sua bagagem para uma casa de quatro cômodos. Escolhera aquele lugar porque lhe parecera o mais próximo de suas origens e ainda distante da euforia tecnológica dos grandes centros comerciais.
À tarde, os moradores abandonavam ruas e estradas, tentando se proteger de maus tratos piores, permitindo que o calor os curtisse em suas casas altas e de madeira, e suas sílabas se arrastassem nas conversas lentas que fluíam desses mestiços, castigados pela intransigência da Terra, que insistia em se aproximar demasiadamente do Sol.
Na casa em frente, um senhor de muita idade se tinha numa cadeira de balanço posando lateralmente a quem passasse. Tentava puxar a lâmina de uma pequena faca por entre a casca e o miolo de uma laranja, esforçava-se, mas tremia muito e não conseguia. Mamede atravessou a rua e se ofereceu para ajudá-lo:
– Posso descascá-la?
O senhor chorava e sua angústia parecia tanta que, apesar das lágrimas, mantinha uma expressão inflexível e a mantinha como se isto fosse o seu maior e único orgulho:
– A vida é isso que vês pelas escolas, pelas fábricas e pelos cantos: um ritual inevitável de decepções. Alguns, aqueles que se julgam os mais espertos, enganam-se com a própria estupidez e até choram menos, mas não deixam de ser submetidos, cedo ou tarde, aos estragos do tempo.
– Por que estavas chorando?
– Porque também me enganei. Deixei-me convencer por um punhado de conceitos mutilados e rançosos e arrisquei todos os meus recursos pelos milagres que fariam por mim. Contudo, não sou menos velho nem menos decrépito que qualquer outro velho decrépito. Estou também esperando a morte como quem aguarda uma solução.
– Não tens amigos?
– Perdi toda a minha família. Alguns, os mais próximos, morreram e de outros não tenho notícias. Tinha, sim, um amigo, Oswald. Tínhamos uma amizade construída desde a infância, mas não pudemos nos ajudar quando mais precisamos. Ele, um sonhador, um revolucionário-pacifista-bem-humorado (é assim que se definia), brincava com as palavras e com a vida, mas precisava de muito dinheiro pra continuar com as suas gostosas subversões. Eu só precisava de alguém que agora perdesse comigo para que juntos pudéssemos nos reorganizar, mas esse meu amigo já não existe. Vês? Nem mesmo essa
amizade, o que fiz de mais interessante, conseguiu se justificar.
– Estás tentando me dizer que é apenas isto o que a vida tem pra mim? Que seria um tolo se esperasse sentir um dia a alegria de um vencedor?
– Não estaríamos vivos se não houvesse a tristeza embalando a alegria. Do mesmo modo, não teríamos espetáculos se não tivéssemos o aperfeiçoamento doloroso do artista. Portanto, não te iludas imaginando um futuro sem sofrimentos. Temos de vencê-los para que deixem de existir e, naturalmente, não os venceremos sem que os enfrentemos corajosamente. E se não os vencermos, isto nos dirá que são mais fortes que nós e certamente nos deixarão suas marcas.
– Não pudeste vencê-los?
– Não me determinei a isto. Gastei minha vida com pequenas ambições e me esforçando para diminuir a dor dos marginalizados que encontrei pelo meu caminho. Não me arrependo do que não fui e do que fiz porque sei que eu não podia fazer melhor. Eu acreditei inteiramente que a resignação e a bondade me fariam merecedor de todas as recompensas, mas infelizmente não é assim que os melhores fatos se articulam.
– Sentes-te traído?
– É só o que sinto. Além da tristeza de saber que isto é o pior que me podia acontecer. Não me tivesse iludido com promessas típicas de quem se enxerga pronto e superior e por isto habilitado à benevolência ou, ao contrário, se não me tivesse sentido incapaz de traçar minhas próprias trilhas e por isto disposto à caridade para usufruir trilhas alheias, o pior que me poderia acontecer seria me culpar de não ter feito tudo que deveria e isto me seria perfeitamente suportável, pois nossos limites podemos vencê-los, inventamos quaisquer ou todas as esperanças se necessário, e se não os vencemos, pelo menos temos o conforto de termos feito a parte que nos cabia. Enfim, minha dor não é a de não ter conseguido atirar e sim a de ter atirado no alvo errado.
– Não farias o que fizeste e do mesmo modo, se tivesses outra oportunidade?
– Faria, se não pudesse contar com as experiências que amealhei, mas se pudesse dar sequência ao que aprendi, tomaria outros caminhos. Talvez seja exatamente por isto que envelhecemos e desaparecemos: para que outros assumam as nossas tarefas e as exerçam com um tanto mais de sabedoria.
– Ainda tens algum tempo. Por que não pões em prática o que aprendeste?
– Porque a gente deve saber quando erra e quando não tem mais chance de acertar. E nem por isto devemos nos sentir revoltados contra o mundo ou contra a nossa ignorância. Devemos pagar dignamente o preço justo por nossos desacertos e fim. Enquanto não aprendemos a acertar, temos que pelo menos aprender a errar pacientemente.
– Então, para que nos servem as experiências, se é assim que deve ser?
– Deus escreve certo por linhas tortas. Não nos é possível só sentir alegrias. Por mais que te sintas privilegiado, pagarás justamente por todos os teus privilégios. Todas as vantagens trazem consigo as desvantagens correspondentes, e também o contrário. O amor e o ódio, o que é bom e o que é mau, o prazer e a dor não se separam. Por enquanto, o melhor que podes ter é o prazer de suportar a dor. E se, apesar de todos os teus esforços, ainda contar com mais tristezas que alegrias, lembra-te que tua história ainda não terminou: Deus ainda a está escrevendo e em linhas tortas, porque em verdade tua história é só um trecho de uma outra história bem maior e perfeita. O que agora te parece ruim, um dia, se apertares o pé e chegares longe, compreenderás o quanto te foi bom. E dirás sabiamente que todos os males vêm para bem. Porém, caso não chegues tão longe, tenta entender que ninguém se inventou e que, portanto, ninguém existe por si, mas por todos. Descansa em paz e deixa que teus fracassos se transformem nas glórias dos teus filhos e dos filhos deles. É para isso que nos servem as experiências: para avaliares tua jornada, tomares consciência do que não sabias e deixares para aqueles que continuam a grande história um pouco mais de conhecimentos.
– Mas estavas chorando....
– Sim, eu estava chorando. Não é fácil imaginar um mundo perfeito, em que a dor e o ódio já não existem porque se desfizeram para que se fizessem o prazer e o amor, e perceber que até poderia, mas infelizmente não poderei alcançá-lo. Gastei toda a minha vida como se estivesse numa estrada em aclive, sempre subindo, suando, reclamando do cansaço, maldizendo a tristeza sem saber que era justamente dela que se inventaria a minha alegria e, de repente, quando a estrada chegava ao cume, pude ver o que havia no outro lado da colina: simplesmente tudo que alguém pode sonhar. Não, meu filho, não é fácil avistar esse mundo maravilhoso e ainda a estrada, uma estrada virgem, que me levaria até ele, e ter de me convencer que a minha tarefa era apenas a de avistá-lo e contar aos outros a respeito desse mundo e dessa estrada. Por Deus, não tenho mais pernas para alcançá-lo. Outros o alcançarão.
– Tenho como alcançá-lo?
– Esforça-te por isto e o destino te trará teus merecimentos.
Mamede atravessou de volta a rua, sentou-se à frente do seu computador e começou a escrever a história de “um homem e seu mundo maravilhoso”.
A chuva e a neve
Trezentos metros, quatro pistas, uma oficina de reparos e manutenção de embarcações, uma cabine e um vigilante. A ponte existia havia trinta anos e desde a sua inauguração contava com o mesmo homem que percorria a valeta do parapeito de hora em hora ou sete vezes por noite. Isto não era propriamente uma necessidade, nem mesmo uma exigência de suas funções, mas cumpria rigorosamente essa rotina como se fosse um ritual, porque desta maneira aprendera a lidar gostosamente com o rio: sentia-se estimulado pela velocidade natural das águas, livre de qualquer ansiedade, a refletir sua própria história e também a de seus personagens, pois escrevia pequenos contos ou novelas quando não estava na valeta do parapeito.
Numa noite incomumente fria, o vigilante deixou sua cabine para a terceira ronda, protegido por luvas, cachecóis e uma touca que lhe cobria também o rosto. Assim que a iniciou, percebeu o vulto de uma pessoa debruçado no parapeito, a cinquenta metros, mas não se desfez do seu ritual. Era uma mulher, uma menina, talvez com dezessete anos. O vigilante a cumprimentou, entretanto não foi satisfatoriamente cumprimentado. Tornou a cumprimentá-la e desta vez não obteve qualquer resposta.
– Posso te ajudar de alguma maneira?
A menina permaneceu imóvel e em silêncio. O vigilante retirou a touca e se aproximou.
– Não posso permitir que permaneças na ponte sem que demonstres consciência do que estás fazendo.
– Minha consciência é um assunto privado.
– Enquanto estiveres sobre esta ponte, não.
– Por favor, deixa-me em paz.
– Deixa a ponte e serás atendida.
– Estou disposta a saltar. Se não me deixares em paz, saltarei imediatamente.
– Estás disposta a quê?
– A saltar, da ponte ao rio.
– És uma atleta?
A menina aceitou a ironia:
– Uma estrela, cansada de tanto brilho.
– Por que não me dizes em que posso te ajudar?
– Porque seria inútil. Minha história não tem conserto.
– Talvez. Estás falando com um escritor, um fazedor de histórias. Às vezes conserto algumas.
– Estás brincando com a minha dor.
– Estou só tentando alimentar esta nossa conversa. Não é sempre que tenho companhia.
– Sou a primeira?
– De que estás falando?
– Alguém mais já esteve aqui para saltar?
– Já. Um rapaz de vinte e três anos.
– Saltou?
– Não. Desistiu depois que lhe contei uma das minhas histórias.
– Qual?
– É uma história simples, dessas para crianças. De um trenzinho, já com alguns vagões, que não conseguia se firmar nos trilhos. Fazia algumas viagenzinhas, curtas, mas chacoalhava muito. Nas curvas, perdia ainda mais estabilidade e às vezes até saía dos seus e entrava nos trilhos de outros. Estava com muito medo das viagens mais longas que já lhe tinham prometido. Imaginou-se nelas e resolveu não enfrentá-las, sofreria bem mais do que supunha que poderia suportar. Nessas viagens curtas já se machucava demais. Disse então a um amigo que não queria mais ser um trenzinho. O amigo, surpreso, aconselhou-o a repensar sua decisão: “Não fariam de ti um trenzinho se não o pudesses ser. Talvez um pouco de paciência e de determinação resolvam as tuas dificuldades”. Mas o trenzinho insistiu na derrota e disse com pesar ao amigo: “Tenho tudo que tens: máquinas, vagões, rodas, amortecedores. Não sei o que é, mas alguma coisa está me faltando. E porque não sei o que é, minha dor é ainda maior. Tenho sempre a sensação de que tudo está contra mim”. O amigo refletiu em alguns segundos e arriscou outro conselho: “Se realmente tens tudo que um trenzinho precisa ter, por que não procuras um reajuste em teus trilhos? Talvez não sejam os melhores ou precisem de algum reparo para que possas te sentir seguro”. “Não tenho os meus trilhos”. “Não tens um destino?”. “Tenho feito pequenas viagens, mas tenho sido puxado por outros. Não sei bem o que quero, nem como alcançá-lo”. “Encontramos onde está o problema”, disse o amigo: “Não tens teus próprios trilhos e não te servem os trilhos de outros. Não se servem justamente porque não és igual aos outros e não tens teus trilhos porque não tens consciência de quem és. Isto é elementar, meu caro amigo. Experimenta a vida, arrisca-te noutros trilhos, não tenhas medo de errar ou de te machucar, só assim perceberás quem és, poderás escolher um destino e encontrar teus trilhos. E quando os encontrar, tuas angústias deixarão de sê-las e terás muito prazer em ser um trenzinho, pois a felicidade não é a realização de todos os sonhos, é a certeza de que os estamos realizando”.
– Esperas que eu não salte por causa desta história?
– Não espero qualquer atitude de quem quer que seja. Não me faria qualquer bem depender da atitude de alguém.
– E consegues te sentir alheio a todos?
– Estou sempre muito ocupado com os meus planos e com a execução deles que mesmo que eu quisesse, eu não teria tempo para cobrar qualquer comportamento nem mesmo dos meus filhos.
– Não dependes de ninguém?
– Dependo de tudo e de todos, mas é uma dependência natural. As coisas e as pessoas enquanto se transformam acabam me transformando, como as transformo enquanto me torno outro. Não tento anular essa dependência; tento compreendê-la e torná-la parte de mim.
– Por que não tenho essa habilidade? Por que, saindo de mim, tudo sai errado?
– O que é certo ou errado? Em que te apoias para dizer que, saindo de ti, tudo sai errado? Temos alguns princípios a partir dos quais determinamos o que é certo ou errado. Quais são teus princípios?
– Se os tenho, não os conheço.
– Não falta quem nos diga o que é bom e o que é ruim e também não falta quem aceite esses conceitos sem averiguar os princípios sobre os quais foram erguidos. Talvez estejas sofrendo por erros que em verdade são acertos. Pensemos: todos querem as mesmas coisas, pois todos querem a felicidade. Todos querem se sentir muito bem e isto significa não sofrer. Gastamos nossas vidas correndo atrás de pequenas ou grandes fortunas com o firme propósito de conquistar confortos que ainda não temos e garantir alguma estabilidade no futuro para, além de evitarmos muitos sofrimentos, vencermos o medo de sofrer. Ensinaram-nos isto e desta maneira. Baseados em que princípios? Neste: a condição em que nos encontramos é definitiva; fomos criados assim como somos e assim seremos eternamente, portanto, sofra menos porque esta é a felicidade possível. Eu te pergunto: esse princípio ainda está valendo? Realmente a condição em que nos encontramos é definitiva? Esses trilhos te servem?
– Creio que não.
– Estamos crescendo; estamos nos transformando dia a dia, descobrindo o que não sabíamos e já sonhando outras descobertas. Erramos e sofremos as consequências dos nossos erros justamente para aprendermos o funcionamento das coisas e, se isto é verdade, os erros são bons porque precisamos deles para nos tornar conhecedores e consequentemente senhores da nossa própria história. E se é verdade que os erros são bons, porque nos ensinam; quando erramos, em verdade acertamos, pois se não errássemos, não descobriríamos a verdade. A partir deste princípio também podemos dizer que aqueles que procuram evitar sofrimentos estão desacelerando seu próprio desenvolvimento e aqueles que não aceitam as consequências dos seus erros sofrem duas vezes: as consequências e a incompreensão. Parece-me que é este o teu caso. Por que não experimentas tua vida de outra maneira?
– Eu teria alguma chance? Em que eu me asseguraria?
– Disse o Senhor: como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam, mas molham a terra para que fique fértil e produtiva, para que dê sementes ao semeador e pães aos famintos, o mesmo acontece com a palavra que sai da minha boca: não volta para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem ter cumprido a sua missão. Assegura-te nisto: nada acontece em vão. A natureza gastou bilhões de anos para que um dia nascesses tal como és e fizesses a parte que te cabe. E não faria de ti uma mulher se não a pudesses ser, pois todos têm sua circunstância e não apareceriam se não a tivessem: quem tem como nascer, portanto, tem como sobreviver e crescer. Tua angústia também não te importuna gratuitamente. Ela tem a difícil tarefa de te apresentar a necessidade de buscar a consciência de ti mesma.
– Mesmo me acabando, não terei existido em vão?
– De qualquer maneira, saltando ou não desta ponte, escolheste teu destino e mesmo que não percebas como, terás sido útil a todos. Ficará em nós, tua experiência. Tuas decisões, teus erros e acertos persistirão geneticamente e culturalmente para nos orientar à sabedoria. Por fim, não tentes culpar alguém por teu destino, porque não há culpados nem inocentes. Também por isto procuro contar apenas comigo.
O vigilante recolocou a touca. A menina, pela primeira vez, deixou de só olhar para o rio, porém não teve tempo para ver o rosto do homem com quem conversava:
– Estás indo embora?
– Preciso voltar para a minha cabine. Estou agradecido por tua companhia. Tenhas uma boa noite!
A menina esperou que o escritor iluminasse sua cabine, sentasse-se a uma máquina de escrever, esfregasse suas mãos uma a outra e interrompesse seu silêncio com os carimbos das teclas no papel para só então enxugar uma lágrima e abandonar a ponte em direção oposta.
Os campos do Senhor
O condenado, amarrado em suas mãos, sorria às paredes quando o sacerdote entrou:
– Tens motivos para sorrir?
– Não há graça maior que a compreensão. Tua presença, sobretudo, inspira-me alegrias que nunca tive.
– O Senhor esteja contigo!
– Repetes tuas palavras usando-as como signos de tua autoridade. Não me importam, desta maneira.
– Como queres que as repita?
– Com a sabedoria de quem as criou.
– É esta a minha intenção.
– O Senhor está mesmo comigo?
– Ele está incondicionalmente em todos nós.
– Deixarás que matem teu senhor?
– Ele não morrerá contigo. O Senhor é a glória e, portanto, estará contigo enquanto sobreviver a esperança de te arrepender.
– Ele me abandonará, eu sei.
– O Senhor não abandona um filho seu.
– Então morrerá comigo.
– É inquestionável a eternidade de Deus. Teus pecados já são bastantes. Não tentes tornar impossível a tua salvação.
– Teu senhor pode me salvar?
– O poder de Deus é infinito.
– Ninguém pode me salvar. Não pude compreender algumas verdades antes de ser devorado por elas. Empreendi alguns passos para que um dia alguém as compreenda a tempo e seja realmente salvo. Fiz a parte que me cabia e estou feliz por isso. Tenho certeza de não ter decepcionado meu senhor, pois não esperava de mim mais que a compreensão dos meus próprios erros.
– Por que foste condenado?
– Não tinha para os meus filhos o que comer. Ninguém me tinha dado o que fazer para que eu pudesse pedir em troca o alimento. Pensei que não seria justo deixar meus filhos definhando enquanto outros se fartavam em abundância. Entrei numa casa onde não faria falta o que eu pretendia levar, mas fui surpreendido pelo cozinheiro. Ele avançou contra mim com uma faca e, se não o matasse, ele me mataria, pois me julgava o pior de todos os homens. Gritava usando todos os xingamentos que tinha em mente. Tentei fugir, mas não soube fazê-lo. Eu estava imobilizado pela gravidade da circunstância em que me tinha posto.
– Disseste-me que não há maior graça que a compreensão. Compreendes também essa circunstância em que te puseste?
– Por isto eu sorria quando entraste.
– Perdeste a fé?
– A compreensão só nos torna mais próximos do Senhor. Minha fé só está menos cega.
O sacerdote baixou seus olhos admitindo não ter tanta compreensão e perguntou:
– O que está enxergando que eu ainda não posso ver?
O prisioneiro se levantou, dirigiu-se à janela e iniciou uma resposta:
– Um lavrador semeou boa semente em seu campo. Entretanto, numa noite, quando todos já dormiam, um inimigo do lavrador semeou joio junto ao trigo e se foi. Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os empregados procuraram o lavrador e lhe disseram: “Senhor, não semeaste boa semente em teu campo? Então, de onde apareceu este joio?” O lavrador respondeu: “Algum inimigo o semeou”. Os empregados lhe perguntaram: “Queres que arranquemos o joio?” O lavrador disse: “Não. Pode acontecer que, arrancando o joio, arranquem também o trigo. Deixem crescer um e outro até a colheita. Em seu tempo, direi aos ceifadores: arranquem primeiro o joio e o amarrem em feixes para que seja queimado. Depois recolham o trigo ao meu celeiro”.
Matias, o prisioneiro, deixou a janela, sentou-se novamente à frente do sacerdote e prosseguiu:
– Somos os campos onde o Senhor semeia suas palavras. Entretanto, a inteligência, que com o seu advento nos diferenciou dos outros animais e a todo instante nos oferece alternativas, tenta-nos a cultivar também outros princípios, tornando-nos sujeitos ao pecado, contudo, são os erros que nos encaminham aos acertos. Sem a inteligência, não teríamos como errar, e também não teríamos como encontrar a verdade. Nossas experiências, também com os nossos desacertos, ensinam-nos a diferenciar o joio do trigo, pois todos temos conosco a mentira e a verdade. O Senhor nos pede, por isto, que não matemos nossos semelhantes para que não matemos também suas palavras. Ele espera pacientemente pela colheita, pela consumação do destino que escolhemos para as nossas vidas, para que seus princípios sejam preservados e seu trabalho tenha continuidade, para que as experiências humanas sobrevivam de geração a geração e tenha sequência a construção deste mundo que ainda busca a consciência de si mesmo.
O sacerdote lhe sorriu. Deixou-se pensar se haveria alguma chance de impedir a execução de Matias. Ao amanhecer, os soldados viriam buscá-lo. Sua imaginação distanciava-se vertiginosamente quando aquele que se confessava o interrompeu:
– Em que estás ocupado?
– Minha história não me permitiu tais conclusões. Minhas experiências, enfim, não foram suficientes para encadear tais pensamentos. Devo admitir por isto que, mesmo me dedicando inteiramente às palavras do Senhor, não fui digno de tamanha clareza. Mataste, descumpriste as leis de Deus, mas aprendeste tanto com teus erros que me sinto vergonhosamente ludibriado pela minha ignorância.
– Tua história ainda não terminou. Tens por que e como te escolher outro destino.
– Não tenho mais aqui o que fazer. Confessa a ti mesmo o que ainda tens a te arrepender e estarás perdoado.
O confessor deixou a cela determinado a alguma atitude que o confortasse. Matias se deitou, mas não adormeceu. “Terei tempo demais para descansar”. Passou grande parte da noite acompanhando os movimentos das nuvens que balanceavam o luar. Ao amanhecer, o carcereiro o chamou e pediu que o acompanhasse:
– Traze teus pertences.
Matias acomodou duas calças, duas camisas, dois livros e um par de sapatos numa sacola e saiu. O responsável por sua guarda o esperava em sua sala com um laço de forca entre as mãos:
– Estás livre; vai quando quiseres.
O ex-prisioneiro gastou alguns segundos em silêncio, imaginando o que poderia ter acontecido, mas nenhuma das possibilidades que imaginou o convenceu:
– Por quê?
– Não sei. Estou só cumprindo mais uma ordem.
Ainda no caminho de volta para casa, um mensageiro o interceptou para lhe entregar uma encomenda: um livro dos evangelhos. À margem do capítulo 13 de Mateus havia a seguinte anotação: “Estou encarcerado por teu crime, mas não te preocupes, que um sacerdote não pode ser condenado à morte: estou apenas preso ao que me inspiraste compreender”.
A outra face
Antoniano, um mendigo, lavava-se, usando uma das quinze torneiras da praça central de uma pequena cidade, quando uma voz masculina pediu imperativamente para que se afastasse. Não tinha terminado seu banho, mas se afastou, tinha tempo demais para concluir suas tarefas. Entretanto, correu os olhos e percebeu que todas as outras torneiras estavam desocupadas. Tentou encontrar algum recurso especial nessa, mas não encontrou. Experimentou uma segunda torneira, funcionava perfeitamente. Convenceu-se de que quem o interrompera o fizera apenas para provocá-lo e seguiu em seus afazeres sem lhe dar atenção. Mas um senhor ainda ágil e forte descurvou-se do bebedouro, tornou-se para o mendigo e deu-lhe um soco no olho esquerdo.
– Lava-te noutro lugar. Isto não é um banheiro.
– Não tenho outro lugar.
– Fica, pois, sem tomar banhos. Faz parte do teu uniforme.
– Tens também tua sujeira e pior porque tens também o orgulho de conservá-la.
Escariotes socou novamente o olho esquerdo de Antoniano.
– Talvez o primeiro não tenha sido o bastante para despertar teu juízo. Não tentes me procurar em teu mundo porque não me acharás. Também não tentes conversar porque não te darei ouvidos. Tuas palavras fedem como tuas feridas.
– Ninguém soca alguém porque está feliz. Entretanto, tua infelicidade não me incomoda. Espero que sobrevivas às tuas misérias.
– Desaparece desta cidade antes que não tenhas mais tempo para tanto.
– Farei tua vontade. Bem menos custoso que fazeres a minha.
– Nunca te prestaria algum favor. És um vagabundo, talvez um ladrão.
– Deverias prestá-lo por ti. Treinarias tua consciência e quem sabe te tornarias menos selvagem. A violência não pode ser mérito senão dos animais desesperados.
– Julgas-te superior a mim?
– Julgo-me ser exatamente quem sou: pequeno e consciente da minha pequenez.
– Não vales um só centavo, bem o confessas, e de onde vem tua arrogância?
– Minha consciência me aponta principalmente para o que não sou e o que devo fazer para sê-lo. Pareço-te arrogante, o que é muito normal, porque minha humildade me oferece algumas certezas e consequentemente alguma estabilidade. É bem menos difícil alguém se convencer de que é o que não é do que ter certeza de que não é o que gostaria de ser. Exatamente por isto tua prepotência não te oferece qualquer certeza, nenhuma estabilidade e te pareço arrogante.
Escariotes deu um terceiro soco no mendigo, mas nessa vez não o derrubou e ainda sentiu alguma dor no pulso.
– Por que ainda estás aqui? Gostas de apanhar?
– Disseste-me que não me darias ouvidos, no entanto, também ainda estás aqui. Por quê? Temos o que aprender um do outro. Trata-se de uma circunstância desagradável, mas ninguém escolhe o que lhe parece sacrificante, por isto as necessidades cuidam de nos aproximar e de nos manter próximos até que não tenha mais sentido essa proximidade.
– O que tens a me oferecer?
– Minha vida, minhas experiências, muitas dúvidas e algumas certezas.
– Não estou interessado. Aliás, se queres me oferecer alguma coisa, oferece-me tua ausência.
– As circunstâncias a que somos destinados oferecem a tudo e a todos o que somos e o que temos. Eu, pessoalmente, não quero te oferecer absolutamente nada. Estou aqui cuidando apenas dos meus interesses.
– É interessante para ti seres humilhado?
– Tuas pancadas não me humilham. Elas, ao contrário, tornam-me mais forte porque exercitam a minha compreensão dos limites em que nos encontramos e também a minha capacidade de recuperação. O Senhor nos deixou estas palavras: “Se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe também a outra...”. Ele as nos deixou para que pudéssemos nos aproximar da verdade. Se alguém batesse em tua face e soubesses de todos os motivos que levaram esse alguém a te bater, não terias por que reagir contra essa pessoa. Terias pena, serias solidário, oferecerias a outra face porque reconhecerias no gesto a pobreza que um dia fizera parte dos teus dias. Oferecerias humildemente a outra face para que esse alguém pudesse superar sua miséria fazendo o que já terias feito, como se fosse um espelho do teu passado. E não farias isso gratuitamente, farias principalmente por ti; para que pudesses exercitar teu perdão. As experiências nos proporcionam a compreensão e esta nos oferece a desculpa, pois ninguém é estúpido porque deseja; ninguém é menos por prazer. Quando compreenderes os limites que engenham os erros, compreenderás tua própria história. Por isto perdoo meus inimigos: não porque são pequenos e sim porque não sabem quem são.
– Tens pena de mim?
– Os presunçosos não merecem pena; merecem apenas as consequências de suas atitudes. Entretanto, se depois das consequências se sentirem incapazes de serem felizes, nesse caso serão merecedores de minha comiseração.
– Inspiro-te algum sentimento?
– Não. Absolutamente.
– O que farias, caso fosse quem sou?
– Exatamente o que fazes. Nossas atitudes são os resultados das condições em que nos encontramos. Fosse quem és, eu não poderia fazer outras coisas.
– Não tenho culpa do que estou fazendo?
– Ninguém tem qualquer culpa.
– As pessoas pagam pelos seus erros, às vezes com a própria vida, e me dizes que não têm culpa, pois não podia ser de outra maneira? Pagamos por erros que não podíamos evitar?
– Inventamos oportunamente a culpa para que a estupidez não nos destruísse. Não tivéssemos culpados, hoje não estaríamos vivos para compreender que em princípio não existe culpa. Teríamos destruído todos e tudo que nos fosse possível iludidos pelas promessas miraculosas das soluções fáceis. A culpa nos preservou. Ela faz parte da nossa história como um barco que usamos para cruzar o rio e agora não nos é mais útil porque estamos atravessando um deserto.
– Não precisamos mais de culpados?
– Precisamos e precisaremos enquanto forem capazes de ameaçar nossa sobrevivência. Podemos desculpar alguém, mas não podemos eliminar as consequências dos seus erros. Podemos, sim, não reagir contra os erros que aparentemente nos prejudicam e isto por si já seria louvável, pois provocaria no outro a reflexão, já que não encontraria em nós um espelho de sua ignorância.
– A quem perdoa, de que adianta o perdão?
– É como se existisse um trilho em que temos de nos encarrilhar para que possamos chegar à felicidade. Enquanto aprendemos a perdoar, estamos aprendendo a compreender os mistérios desses trilhos; e depois, enquanto perdoamos, vamos nos encaixando neles e já nos sentindo de bem com a vida.
– Estou perdoado?
– Por mim, estás perdoado por tudo que fizeste e por tudo que ainda farás.
– Teu nome, qual é?
– Não tenho nome; nunca precisei de um, mas se quiseres, dá-me um quando te lembrares de mim.
O mendigo alçou seus pertences às costas e desapareceu. Escariotes não pôde entender por que tudo aconteceu tão rápido, sem que tivesse tempo de perceber a eventualidade daquele encontro e até pudesse insistir para que não se findasse tão logo. Às vezes as grandes oportunidades nos aparecem apenas para que saibamos que existem e nos preparemos melhor para as próximas.
Parábola dos dez marcos
Um rei, depois de ter tomado posse de mais um reino, tornou a sua casa e procurou pelos seus servos. Havia deixado um marco de prata a cada um para que negociassem até a sua volta. Os dez escolhidos tinham que prestar contas dos lucros ao soberano. Apresentou-se o primeiro e disse:
– Senhor, teu marco rendeu dez marcos.
– Estou satisfeito com os teus negócios – disse o soberano – e porque foste fiel e soubeste dar valor ao que recebeste, serás governador de dez cidades.
Por sua vez, apresentou-se o segundo:
– Senhor, teu marco rendeu cinco marcos.
– Portanto, serás governador de cinco cidades.
Outro se apresentou e disse:
– Senhor, eis teu marco que guardei embrulhado num lenço. Guardei-o porque tive medo de ti, que és um homem austero, que tiras donde não puseste e recolhes o que não semeaste.
– Se sabias que sou um homem austero, que tiro donde não pus e recolho o que não semeei, por que não puseste meu dinheiro num banco para que pudesses me devolvê-lo com jurus?
O rei, além destas palavras, mandou que tirassem do servo o marco e o entregassem ao que tinha dez.
– Ele já tem dez, senhor.
– Pois vos digo que a todo aquele que tem, será dado em abundância e de todo aquele que não tem, será tirado o que lhe resta.
Elias tomou coragem, arriscou:
– Isso é justo?
Hedeodoro levantou-se, deu suas costas à janela e respondeu quase soletrando as palavras:
– Assim como há inúmeros critérios para a medição do tempo – os movimentos da Terra, da Lua, o amadurecimento de uma maçã, o enfileiramento das partículas de uma ampulheta – também há inúmeros critérios para a observação do que seria justo. Podemos resolver que o justo seja a distribuição igualitária dos recursos naturais; ou proporcional ao número de horas trabalhadas; ou ainda em acordo com a idade ou o tipo profissional. Entretanto, qual dessas resoluções seria justa? Não há mais de uma verdade para uma mesma questão e a verdade para o que é justo é esta: alguém que tenha um farol melhor terá o seu caminho mais iluminado e, portanto, chorará menos, porque tropeçará menos e chegará primeiro; alguém que tenha um farol dos piores tropeçará e se machucará muito e provavelmente não chegará. As condições que nos recompensam nos dão dadas pelo critério do merecimento, pois apenas este é verdadeiramente justo.
– Quem pode julgar com sabedoria quanto merecemos?
– Infelizmente ainda temos quem possa fazê-lo. Mas podemos lidar sabiamente com o que é justo. Basta que nos preparemos continuamente. As oportunidades existem a todo instante. E a história nos dirá do que fomos merecedores.
– A história não erra?
– Não, Elias. Tudo o que aconteceu desde o princípio até aqui é só um registro de merecimentos, dadas as condições genéticas e ambientais de cada vivente. Não podemos condenar qualquer acontecimento, pois todos estão encadeados em causas consequentes doutras. O servo que perdeu sua moeda de prata porque não a multiplicou teria evitado a perda se não se tivesse acovardado diante da oportunidade que lhe dera seu soberano. Portanto, não esqueças: tua vida é a tua maior oportunidade. Não tenhas medo de arriscar tudo que és e tudo que tens. Do contrário, perderás tudo.
Elias curvou-se em agradecimento ao padre, refez o sinal da cruz e deixou a sacristia. Matilde, sua mulher, aguardava-o pacientemente à porta da igreja. Puxou-a pela mão e apressou o passo para casa. Estava disposto tanto a entrincheirar-se e morrer lutando por seus direitos quanto a abandonar imediatamente a sua fazenda e inventar uma nova história. Tinha sentimentos suficientes para decidir por uma ou por outra.
– Tomei uma decisão.
– Podemos arrendar nossas terras.
– Os arrendatários provavelmente facilitariam a posse dos coronéis.
– O padre não pode interceder?
– Ninguém pode fazer praticamente nada por nós. O delegado também tem interesse no que é nosso.
– O padre, o que disse?
– O padre entende também que o nosso filho não morreu por acidente: foi morto por alguém que sabia o que estava fazendo.
– Juvêncio? O delegado?
– Esses pagam pelo que querem.
– Alguma coisa a gente tem que fazer.
– Não sabemos nos defender.
– Por que não contratas também uns capangas?
– Essas terras têm mesmo esse valor? Justifica a contratação de gente para matar ou morrer? Por que não pegamos o que querem pagar e procuramos outro lugar de viver?
– Esse é o conselho que o padre te deu?
– Padre Hedeodoro é um homem bem formado. Não me disse o que eu devia ou não fazer, mas me recontou uma parábola e me ofereceu alguns princípios com os quais podemos tomar a melhor decisão.
– A melhor decisão é sempre muito honrosa; fugir não é honroso.
– Porque por vezes dão mais valor às terras do que à própria vida, não temos que fazer o mesmo. Se os deixarmos regalados sobre o que era nosso, feito porcos incapazes de comer toda a lavagem, estaremos apenas cuidando doutros valores. Fugir não é honroso e não é isso o que vamos fazer. Nossa casa, nossa lavoura e nossa criação, pudemos fazê-los existir e poderemos fazer muito mais se soubermos evitar a morte e não tivermos medo da vida. Levaremos em nossa memória e em nossas atitudes o que pudemos aprender com o que tivemos aqui e somaremos a isto o que aprenderemos com o que ainda não tivemos e não teríamos se ficássemos. É verdadeiramente nosso apenas o que está em nós. Não podemos permitir que nossas vidas sejam obstruídas por bens que verdadeiramente não nos pertencem.
Pararam na porteira, mas tinham pressa. Não queriam surpresas. Elias perguntou:
– O que tens a me dizer?
Matilde abriu a porteira e entrou respondendo:
– Fecha o negócio que já estou encaixotando as cobertas. Não podemos deixar que decidam por nós, que nos transformem em assassinos e nos desviem dos nossos propósitos.
Um barulho de rio trouxe algumas lágrimas, também alguma certeza: “Nossas vidas não podem se resumir nestas terras e se se resumem, não podemos deixar que isto persista, pois seriam pequenas demais, as nossas vidas”.
Terra fértil
Tomás viajou trinta e duas horas para estar com seu irmão em seu leito de morte. Não tinham mais alguém além de um ao outro. Ilianor tentou se curvar para cumprimentá-lo, mas desistiu assim que suas pernas desandaram a tremer. Tomás se aproximou, sentou-se à margem da cama, pousou sua mão sobre uma das pernas trêmulas e esperou que se acalmassem. Na janela, uma chuva ensimesmada com o amortecimento perfeito de suas gotas persistia baixando a temperatura. Ilianor sorriu, tentou reagir:
– Fizeste boa viagem?
– Não tive qualquer problema.
– Sabias que isto ia acabar acontecendo, não é?
– Não posso dizer que estou surpreso.
– Por que não te escutei? Por que não segui teus conselhos?
– Infelizmente todas as experiências são necessárias; alguém tem de vivê-las.
– Eu precisava disto?
– Ter-me-ias ouvido, se não precisasses.
– Eu tinha como evitar?
– O que torna desnecessária uma experiência é a capacidade que temos para evitá-la. Em outras palavras, se tivesses como evitar, isto não te estaria acontecendo.
– Onde está então o meu erro?
– Já passamos por experiências demais. A história já é bastante densa para ser suficiente. Teu erro foi não ter atentado para o que já havia acontecido. Não te deste uma oportunidade para que pudesses enxergar algumas verdades indispensáveis e até redesenhar a rota do teu destino.
– E por que não me dei esta oportunidade? Não tenhas medo de me ferir. Dize exatamente o que tens a me dizer. Sou geneticamente inferior a ti?
– Talvez. Todos somos únicos, portanto, não há dúvida de que alguns são superiores a outros. Nossas condições genéticas, porém, não são inflexíveis. Alguém pode nascer geneticamente inferior – com quantidades e qualidades de experiências das menos invejáveis – e superar todos os outros, pois todos têm as mesmas oportunidades e nem todos as aproveitam satisfatoriamente. Aqueles mais carentes, normalmente são os que buscam mais e melhores resultados. A condição genética absolutamente não é determinante.
– O que é determinante?
– Nada e ninguém. Todos alteram suas circunstâncias e são alterados por elas. E são mais profundas as nossas transformações quanto mais significativas são as alterações que causamos às nossas circunstâncias.
– Não me respondente ainda objetivamente por que não fiz o que fizeste da tua vida.
– Creio que estavas muito ocupado com outros valores para te dares conta do que perdias.
– Não me eram importantes esses valores?
– Não o fossem, não te gastarias com eles.
– Por que eu deixaria de me ocupar com os valores que me eram importantes para me dar conta daqueles que eram importantes a ti?
– O Senhor nos deixou a seguinte parábola: o semeador saiu para semear. Enquanto semeava, algumas sementes caíram à beira do caminho, os pássaros vieram e comeram. Outras sementes caíram em terreno pedregoso onde não havia muita terra. As sementes logo brotaram porque a terra não era profunda. Mas, quando o sol apareceu, queimou todas as plantas porque não tinham raiz. Outras sementes caíram entre espinhos: estes cresceram e sufocaram as plantas. Outras sementes, porém, caíram em terra boa e produziram trinta, sessenta, cem frutos por semente. Todo aquele que ouve a verdade e não a compreende é como a semente que caiu à beira do caminho: vem o maligno rouba o que foi semeado em seu coração. A semente que caiu em terreno pedregoso é aquele que ouve a verdade e logo a recebe com alegria, mas não tem raiz, é só um momento. Quando chegam o sofrimento e a perseguição por causa da verdade, este desiste logo. A semente que caiu entre espinhos é aquele que ouve a verdade, mas suas preocupações com o mundo e ilusão da riqueza a sufocam e consequentemente não dá frutos. Eras como esta semente que caiu entre espinhos. Tuas ilusões eram muitas e te cegavam.
– O que eu podia ter feito contra as minhas ilusões?
– Podia ter-te dado a chance de te tornar uma terra fértil. Deixaste de te ocupar contigo para te ocupar com o acúmulo de riquezas.
– Eu seria quem era se tivesse me ocupado comigo? Alguém pode abandonar os prazeres que julga serem os mais intensos? Não me dei uma oportunidade porque não quis ou porque não pude?
– O Senhor deixou as parábolas para quem pudesse compreendê-las. Ele sabia que a grande parte das pessoas que o cercavam não podia acompanhá-lo em sua sabedoria. Tanto que repetia: quem tem ouvidos, ouça. Aqueles que podem compreendê-lo ganham a tarefa de tornarem férteis outras terras para que outras sementes deem frutos.
– Com aqueles que não podem compreendê-lo, o que acontece?
– Erram e pagam pelos seus erros até que um dia tenham consciência do que poderiam ter feito e tentem acertar. Em verdade há pessoas que não podem fazer o que lhes seria melhor. Se pudessem, não seriam quem são e o mundo também não seria o que é. Não há o que não acontece a seu tempo. Não há como acertar sem antes ter errado. Não há como se tornar uma pessoa notável sem antes ter assumido a mediocridade.
– Eu poderia, mas não podia fazer melhor do que fiz. Eu poderia se antes tivesse tomado outras atitudes, entretanto essas outras atitudes não foram tomadas e, portanto, eu não podia fazer nada diferente do que fiz. Não tenho culpa, mas tenho as consequências.
– Tens o que consciente ou inconscientemente escolheste.
– Agora, o que posso fazer?
– Reconhecer teus erros, escolher outro destino, acreditar na possibilidade dele e te esforçar.
– Tenho tempo?
– Todos têm tempo. Basta que estejas vivo para que tenhas todo o tempo do mundo.
– Estou morrendo.
– Estás morrendo porque ainda não compreendeste a vida. Não tens motivos que te convençam a continuar vivo e isto porque fizeste o que te deste para ser feito. Acumulaste riquezas imensas e até mais do que um dia sonhaste. Por isto estás morrendo. Porque não tens mais o que fazer. Esforça-te por pouco e terás pouco; esforça-te por tudo e vencerás.
– Eu quis tudo.
– Você quis Deus e todo o mundo?
– Não.
– Você quis riquezas que, diante de tudo, são quase nada. O dinheiro é muito bom porque nos livra da condição animal, porque nos permite outros afazeres além de caçar e procurar água, mas não é mais que uma garantia de sobrevivência. Afinal, não estamos vivos para ganhar dinheiro; vivemos para evoluir. Crescer. Ser melhor hoje que ontem para melhorar nossa compreensão da vida e do mundo e ser completamente feliz.
– És completamente feliz?
– Estou me esforçando.
Tomás herdou todas as riquezas de Ilianor. Tomou conhecimento de todos os palmos de terra, de todos os gramas de ouro, de todas as tristezas e alegrias de todos os criados e se foi. Levou consigo apenas o que devia ser levado: a consciência de que seu irmão e suas riquezas existiram e que as experiências dele agora são partes também de sua vida.