O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA – Mia Couto.

         De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.

         O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas.

         Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.

         “Deve ser foi um relâmpago”, pensou.

         Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?

         Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntam os todos rios para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança o seu voa incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e aí deita a sua urina.

         Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.

         Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.

         — Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.

         A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saída. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:

         — Este, da maneira que vive misturado com a criação, há-de casar com uma vaca.

         E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos do djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.

         Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta de casa. Quando chegou ela disparou aflição:

         — Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.

         — O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.

         — Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...

         — Aconteceu brincadeiras dele, mais nada.

         Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.

         — Boa noite, precisam alguma coisa?

         — Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.

         Outro soldado acrescentou:

         — Queremos saber onde está o pastor dele.

         — O pastor estamos à espera — respondeu Raul. E vociferou: — Malditos bandos!

         — Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.

         Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?

         — Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.

         — Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.

         Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.

         Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:

         — Azarias, volta. Azarias!

         Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.

         — Apareça lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.

         Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos, habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.

         — Azarias?

         Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.

         — Sou eu, Raul.

         Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ele também.

         — Volta em casa, avó!

         — O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.

         E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.

         — És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.

         — Não quero, vou fugir.

         O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para saltar e agarrar as goelas do sobrinho.

         — Vais fugir para onde, meu filho?

         — Não tenho onde, avó.

         — Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados — precipitou-se a voz rasteira de Raul.

         — Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria. — E voltando-se para o pastor: — Anda, meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar animais.

         — Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.

         Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.

         — Como é? Os bois estão aí?

         — Sim, estão.

         Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade do Azarias.

         — Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?

         A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio e pediu ao miúdo que escolhesse.

         — O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.

         Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.

         — Fala lá o seu pedido.

         — Tio: próximo ano posso ir na escola?

         Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:

         — Vais, vais.

         — É verdade, tio?

         — Quantas bocas tenho, afinal?

         — Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.

         — Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.

         O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite.

         O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:

         — Vens pousar quem, ndlati?

         Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.

         — Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?

         E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem da sua chama.

VOZES ANOITECIDAS – O dia em que explodiu Mabata-Bata – MIA COUTO.