contos

prosa mínima

O sol no meio do céu.

         Arthur desacelerou gradativamente o andar. A sua frente, uma pequena cruz de eucalipto fincada entre pedras. Parou diante da cruz. Havia nela sinais de que houvera ali uma inscrição. Levantou os olhos por sobre a planície, disse o nome de uma mulher e saiu a sua procura incondicionalmente. Seu suor escorria no rosto até se soltar, bater no solo áspero, esconder-se sob as botas, depois não ser mais que um minúsculo plano de areia e sal aquecidos.

A velha Marta vivia só.

         Aprendera não mais procurar quem a ouvisse ou lhe contasse outras histórias. Bastavam-lhe os sonhos e os quatro cômodos da Rua Padre Manuel. Passeava de um canto a outro certificando-se de que ainda vivia. Quando se sentava, crescia-lhe a impressão de que tudo havia terminado, de que nada mais existia além das imagens que conseguia reestruturar de antigas histórias. Era como se tudo soubesse a respeito da morte e enfim chegara sua vez. Mas daí punha-se a andar. E andava sempre se apoiando nas paredes que resistiam o quanto podiam aos seus cento e trinta quilos. Os poucos móveis da casa ficavam dispostos às paredes, pois era mesmo entre os móveis e as paredes por onde andava a velha Marta. Dia e noite pisava e repisava os mesmos tijolos. Era cega. Desde um grito no quintal, há muito tempo, quando cozinhava raízes para o seu pai. Onde passava, seu peso fazia côncavo. As águas da chuva que penetravam a casa corriam aos pés das paredes. Num dezembro choveu mais do que foi esperado. Outra água chegava antes daquela se ir. A umidade se espalhou pelos cantos. Apareceu o lodo. A velha Marta escorregou. Morreu nas imagens que ainda conseguia ter.

Ninguém.

         Nem mesmo um pedinte para restabelecer-lhe a opulência. O homem dos olhos dourados desocupou-se das moscas, livrou-se das botas, do monóculo, trepou no parapeito da imensa janela feito um desvairado. Os braços abertos para as bananeiras que se inclinavam para os ventos que vinham do norte, o sangue esquecido nas mãos, a pele cortada pelo tempo, e a solidão tremendo na língua e nos lábios.

Palavra Que Mata.

         Era esse seu nome. Os meninos da tribo espiavam-no sempre que o rio baixava para tornar-se um lago. Palavra Que Mata descia trêmulo das montanhas até a beira das águas, enfiava o rosto na lama e, feito um monstro que ressurge depois de quatrocentos mil anos, fazia correr um grito melodioso entre as árvores, uma palavra irreproduzível que rasgava as matas derrubando espíritos, pássaros, macacos. A chuva vinha na próxima lua. O rio subia. E os meninos tinham a vida inteira para entender essa palavra que mata.

Uma hóspede pediu um táxi.

         Um homem de barba preta subiu a escada do jardim. Paulo Freitas resolveu esperar que voltasse para identificá-lo. O jardim não dava acesso a outro lugar senão à recepção. Vinte minutos depois, o homem de barba preta não voltou. Paulo Freitas pediu por telefone um segurança para buscá-lo do jardim. O segurança subiu a escada. Dez minutos depois, Paulo Freitas. O homem de barba preta dançava Let me sing sobre o parapeito a uma mulher nua que o admirava do apartamento à frente.

Marcelinha Rastafári

         A mãe estava desconfiada de que a filha tinha inaugurado a praça de alimentação, mas a menina jurava que era virgem. Então a mãe fez uma trança com os cabelos da perereca da filha, juntando os dois hemisférios. Uma trança daquelas de esticar o couro. A menina fez cara feia pra sempre, mas a perereca está bonita nas revistas dos homens que morrem aos trinta.

Dirço se acostumou a dizer não.

         Não canta, não dança, não copiou a receita de bolo inglês. Não confessa seus sentimentos, não conta piadas, não se esforçou pelos sonhos da adolescência. Não reclama, não grita, não responde, mas um dia se perguntou: como seria o mundo se todas as pessoas fossem iguais a mim? O que eu teria para comer, beber, clicar, jogar, assistir, gostar?

Um cachorro comeu o meu pinto.

         Eu estava numa estrada, mijando no acostamento. Havia uma casa, a uns cem metros. Parecia vazia. A porta e a janela estavam fechadas. De repente me apareceu um rottweiler. Preto. Rosnando. Bem na minha frente. Eu fique imóvel. Ele se aproximou lenta e firmemente. Rosnando. Olhava para os meus olhos. Meu pinto voltou a mijar, involuntariamente. Chamou a atenção do cachorro. O animal avançou. Deu o bote. Apoiou-se com as patas em meu abdômen e abocanhou o pinto. Ficou só o cotoco. Mijando sangue