crônicas
Desejo não é amor
Tomar posse de um corpo bonito e submisso é o sonho de qualquer sujeito.
O desejo é egoísta. Um homem deseja o corpo de uma mulher e chama isso de amor. Ele quer exclusivamente, pelo menos no primeiro instante, satisfazer seu instinto de macho. Quer ser o dono daquele corpo, daquela mulher. E, se ela for extremamente vaidosa e submissa, será perfeita. Uma garota bonita, limpa, discreta, recatada e obediente é tudo de que um homem precisa para dizer que ama.
E ela? Quem é ela? Isso não tem importância.
Uma mulher vê um homem elegante, fica com ele, telefonam-se no dia seguinte, e ela diz pra amiga que foi amor à primeira vista. Isso não existe. Isso é desejo à primeira vista. Um desejo avassalador, às vezes. Doentio, até. Mas não é amor. É uma vontade enorme de possuir. De ter o corpo daquela pessoa à sua disposição.
O amor não quer possuir; quer se unir. No amor, duas pessoas juntam suas virtudes e assumem as limitações um do outro. Tornam-se parceiros nisso que é viver. As qualidades de um colaboram na superação dos limites do outro.
Pessoas que se amam compartilham bens, desenvolvimentos e recursos. Bens naturais e artificiais, que herdaram da natureza e das gerações anteriores; desenvolvimentos pessoais e profissionais; e recursos fisiológicos, psicológicos, culturais, tecnológicos.
O amor é geral; o desejo é específico. O amor é orgânico; o desejo é segmentário. O amor abrange; o desejo seleciona. O amor é consciente; o desejo é instintivo. O amor é a finalidade; o desejo é o guia. O amor se renova; o desejo se mata. O amor é signo de perfeição; o desejo corresponde às nossas carências. O amor conhece quem ama; o desejo não sabe de que deseja. O amor é profundo; o desejo é limitado. O amor assume as limitações do outro; o desejo as repudia.
O desejo então é mau? Não. O desejo é bom. Aponta para as nossas necessidades e nos faz esforçar por elas. Se o amor é o fim a ser alcançado, o desejo é a estrela guia. Ele nos encaminha. A realização dos desejos nos fortalece e nos torna a cada dia mais capazes de alcançar o amor.
Só não devemos confundir rifle de caçar rolinha com bife de caçarolinha. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. O desejo é uma das duas partes do amor. A outra parte se chama fidelidade. Não necessariamente exclusividade. Mas fidelidade. Quem ama assume todas as adversidades até o fim. Ou seja: desejo mais parceria é igual a amor.
A mulher e a história
O mundo moderno, a partir da segunda metade do século 20, com a diminuição da família e a revolução tecnológica, assegurou a ascensão social da condição feminina.
As sociedades contemporâneas passaram a ocupar o tempo disponível da mulher - que não é mais só esposa e mãe - e a supervalorizar o trabalho intelectual em detrimento do serviço braçal.
Se antes as mulheres não podiam participar do mercado de trabalho porque gastavam sua vida na condição de mãe com seus dez ou quinze filhos. E o Estado não lhes oferecia seguranças contra o machismo. Se não tinham condições fisiológicas para competir com os homens nas minas de carvão, podiam disputar uma vaga na fábrica de calçados ou na administração dos recursos humanos.
Depois de Margareth Thatcher, Benazir Butho, Benedita da Silva, Dilma Rousseff, Maria Fernanda Teixeira (presidente do ICT Group, empresa norte-americana de tecnologia), mulher primeira ou segunda ministra, governadora ou presidente de uma corporação empresarial, tornou-se comum (aceitável, para muitos machistas resistentes).
Não precisamos de bola de cristal para saber que as mulheres farão uma revolução comportamental nas próximas décadas. Têm quebrado tabus dia a dia e, na medida em que avançam sociologicamente, deixam para trás um mundo machista e impulsivamente expansionista para impor uma cultura de preservação natural das condições humanas.
Isso não quer dizer que as mulheres estão tomando o lugar dos homens. Quer dizer apenas que elas estão ocupando o lugar que lhes cabe e em muito boa hora. O expansionismo masculino continua e continuará (temos muito que descobrir e inventar), porém contando com as garantias femininas de preservação do patrimônio fisiológico e intelectual da humanidade.
No início do século 19, a Terra alcançou a marca de 1 um bilhão de habitantes. Nessa época, cortar ou não uma árvore não fazia a menor diferença. Em 2011, chegamos a 7 sete bilhões de humanos sobre este planeta. Precisamos plantar árvores, muitas e urgentemente.
Os homens são conquistadores, exploradores, aventureiros, gostam de riscos, de perigos. Engenharam civilizações, ampliaram impérios, colonizaram povos primitivos, impuseram culturas, provocaram miscigenações genéticas e linguísticas, descobriram mares, criaram e destruíram mitos, inventaram sistemas sociais, políticos, econômicos, governamentais, legislativos, judiciais, educacionais, penitenciários, e, até o século 20, o mundo precisava dos homens na liderança porque dependia de expansionismo e exploração.
Temos um mundo unilateralmente masculino. E, talvez, justamente por isso, temos cometido tantos erros históricos. Pela ausência das características femininas na construção e administração dos ambientes sociais. O processo natural de globalização, no entanto, encerrou esse masculinismo. O século 21 tem em sua perspectiva a bilateralidade masculina-feminina no acabamento do mundo moderno.
As mulheres naturalmente se ocupavam e se ocupam com a preservação, com a defesa do patrimônio, com a segurança das crianças, com o futuro da família, com a manutenção dos recursos de sobrevivência. Exatamente por isso, o mundo, hoje, precisa urgentemente das mulheres, da visão feminina da realidade. Porque precisa de preservação e segurança.
Os grandes impérios da história do Ocidente sucumbiram porque se impuseram um caráter exclusivamente masculino. Conquistaram, mas não souberam preservar suas conquistas. A primeira parte, conquistar, coube aos homens - uma espécie fisiologicamente mais forte e resistente que as mulheres e unidirecionais; mas a segunda parte, preservar, caberia às mulheres – uma espécie psicologicamente mais forte e resistente que os homens e multidirecionais.
Não temos mais para onde ir. Não há mais mares a serem vencidos nem territórios a serem colonizados. Temos de conservar espaços agropecuários, rios, florestas. E os animais dessas florestas. Aquíferos, nascentes, matas ciliares. Precisamos do que ainda temos e do que conquistamos. E de tempo, para nos tornarmos menos ignorantes e realizar pelo menos um tanto significativo dos nossos velhos ideais de justiça e liberdade. A história da humanidade não pode se findar como uma luz que se apaga sozinha.
Boteco, farmácia ou igreja.
O mundo mudou e a cidade também. Em cada quadra, temos uma igreja, um boteco e uma farmácia. Por quê? O estresse é um dos fatores preponderantes de seleção natural no século 21. O cérebro está no limite. O esgotamento psicológico já é o mal mais comum neste século. Depois do trabalho, o cidadão passa na farmácia, para no boteco ou vai para uma igreja. Os casos extremos nem vão para o trabalho; ficam para a boca de fumo.
O que alguém fazia entre seis da tarde e dez noite no século 20? Banhava-se, reunia a família, jantava, ligava o televisor, conversava com os vizinhos, visitava parentes e amigos. Nos fins de semana? Diversão e descanso. Havia um tempo gracioso no dia do trabalhador.
Mas precisávamos nos desenvolver. O mundo se transformava muito rapidamente. Pessoas experientes tornavam-se obsoletas. As novas gerações invadiam o mercado de trabalho dos mais velhos. Pais e avós ainda não podiam se aposentar, mas estavam perdendo suas vagas. Que podiam fazer? O que não fizeram na juventude. Voltaram para a escola. Não podiam ser massacrados pelas novas gerações. Tinham que se atualizar com os novos recursos, com as novas tecnologias, com as novas exigências do público consumidor e contribuinte.
– Mas estavam trabalhando... Estudar, que hora?
– à noite.
– E as visitas, os parentes, os amigos?
– Depois.
Evolução é isso. Os mais velhos já se diziam: quem não aguenta se arrebenta. Há três anos assisti a um filme dos irmãos Ethan e Joel Coen: “Onde os fracos não têm vez”. O filme constrói e desconstrói circunstâncias onde qualquer pessoa com qualquer escrúpulo não sobrevive. Nesses casos em que bandidos enfrentam bandidos e a morte acontece imediatamente, a verdade do título do filme fica mais evidente. Mas a sobrevivência em qualquer circunstância de qualquer lugar sempre não foi fácil. As pessoas menos preparadas sempre desapareceram antes.
Criamos a ética, a moral e a legislação com o objetivo de diminuir a selvageria dessas situações, mas não conseguimos muito. Intensificaram-se a concorrência pela qualidade de vida e a escassez de recursos. Incluímos fatores artificiais nos critérios de seleção natural e só a tornamos ainda mais seletiva.
Os indivíduos que não se poupam, que procuram dar respostas imediatas a todas as exigências pessoais e sociais, esses indivíduos são contemporâneos; eles têm – nem que seja apenas na juventude – a velocidade das transformações sociais; eles acompanham as inovações da contemporaneidade.
As pessoas que não se atrevem, que se deixam abater pela preguiça, que não estão dispostas a se arriscar, essas pessoas são aquelas que vão passar na farmácia, parar no boteco, aprender o caminho da igreja ou ficar na boca de fumo. Porque a vida fica difícil demais para elas.
Não estou, porém, condenando a farmácia, o boteco ou igreja. Remédios existem para remediar e somos muito agradecidos aos cientistas que os viabilizaram para o mercado. O boteco está lá para que os amigos possam descansar confraternamente e aliviar o desgaste psicofisiológico. A igreja é o ambiente ideal para o exercício da fé e o amadurecimento da alma. O problema começa quando o boteco, a farmácia e a igreja se mostram insuficientes.
Quando esses ambientes deixam de ser uma fonte de tratamento médico, uma oportunidade de restauração das condições de trabalho ou um instante de reflexão a respeito da própria existência para se caracterizar como uma evasão, uma atitude desesperada diante de uma realidade insuportável, estamos diante de indivíduos que perderam o trem da contemporaneidade.
Escolas e Soldados
Sobreviver não é o bastante. Temos que evoluir para sobreviver. A vida exige o crescimento constante do individuo para que as circunstâncias não o ultrapassem. Por isso existem as escolas. Para que os alunos saibam quem são, quando e onde estão, e prossigam com o desenvolvimento da vida e do mundo.
O serviço dos professores, no entanto, não é dos mais fáceis. Pensar ainda é uma atividade recente na história do homem. As crianças têm sobras de energia para as atividades físicas, porque trazemos em nós a condição animal. E os animais correm – atrás das presas ou à frente dos predadores. Voam, saltam, pescam. Pensar, porém, começamos há apenas três mil anos, na Grécia antiga.
Exatamente por isso nos empenhamos para que o nosso aluno faça sucesso em todos os dias. Que ele entenda e vibre com sua capacidade de aprender. Porque os nossos filhos precisam de autoestima o bastante para se esforçar. E enxergar possibilidades e oportunidades. Sonhar. Buscar realizações. Gozar e preservar suas conquistas.
Procuramos alternativas cotidianamente para fazer o aluno entender que o seu trabalho é estudar, que é preciso conhecer o mundo a que estão chegando, que precisam acompanhar o desenvolvimento deste mundo para não ficarem atrás, para não comerem poeira. Eles normalmente ainda não podem entender que aqueles que não se mantêm no ritmo que a vida impõe acabam nos botecos, nas farmácias, nas igrejas oportunistas, ou nas bocas de fumo tentando aliviar a angústia causada pelo insucesso.
Dependemos do conhecimento para no fim das contas entender o que é ser feliz. Cristo ofereceu a outra face justamente porque conhecia a infelicidade de quem o estapeou. Se soubéssemos de tudo que uma criança ainda não pode compreender e se soubéssemos explicar convincentemente tudo que um filho já pode entender, talvez não o maltratássemos. Se tivéssemos bem mais conhecimentos a respeito do funcionamento do cérebro, viveríamos mais e melhor. Se conhecêssemos as angústias mais profundas de quem está enfiado em drogas, talvez não o prendêssemos, não o condenássemos, não o desprezássemos, talvez lhe déssemos apenas atenção, amizade e orientação.
O professor é remunerado para aperfeiçoar a sua capacidade de ensinar ensinando. Para estudar e crescer e conquistar melhor qualidade de vida para si para os seus alunos. O professor salva uma vida quando consegue fazer seu aluno acreditar em si mesmo e sonhar. Porém, quem lida com o conhecimento também lida com o seu contrário equivalente: a ignorância.
Em todos os dias, lutamos contra a imobilidade atávica dos nossos alunos. E nos debatemos contra a preguiça, o desânimo, a insatisfação, a irrisória autoestima, a incompreensão, o desrespeito, a carência de boas perspectivas. Lutamos contra o não: não quero, não sei, não posso, não consigo, não entendo, não me interessa, não tenho pai ou não tenho mãe, não estou a fim. Mais de uma vez nos vi como soldados. Feridos, esgotados e lutando.
Soldados caem feridos, mutilados ou mortos. Professores são adaptados, readaptados, licenciados, afastados, internados, aposentados. Alguns morrem nos campos, nas escolas, nos hospitais. Nas clínicas psiquiátricas há professores abatidos tentando sobreviver aos dias em que a animalidade os venceu.
Nossa natureza humana, contudo, não recua. Sobrevivemos às glaciações, aos predadores, terremotos, tempestades, vulcões, fomes, guerras, pestes. Sobrevivemos porque apostamos no futuro. Porque sabemos que podemos ser bem melhores. E seremos.
Objetos Ideológicos
Durante a Guerra Fria – Estados Unidos / União Soviética – essas nações usaram o esporte como propaganda política. Enquanto os soviéticos buscavam medalhas olímpicas para provar a eficiência do regime comunista, os norte-americanos priorizavam o esporte para defender a capacidade o sistema capitalista.
Os soviéticos, baseados na ideia de um Estado proprietário inclusive dos indivíduos, “adotavam” futuros atletas e os mantinham numa rotina sacrificante, desde o fim da primeira infância, com o único objetivo de fazê-los campeões nalguma modalidade esportiva. Sacrificante, porque as crianças eram levadas a treinar obsessivamente e a ignorar outros desenvolvimentos necessários a uma boa qualidade de vida física e intelectual.
É lógico que uma criança, aos quatro ou cinco anos de idade, já destinada a uma modalidade esportiva, tem mais chances de sucesso que uma outra que se descobre aos doze ou treze anos. Também é lógico que uma criança que se dedica – exclusivamente – a uma atividade, desde os primeiros anos de vida, tem mais chances de medalha olímpica que uma outra que divide o seu tempo com a escola e as tarefas de casa e as conversas e brincadeiras com amigos.
Já os norte-americanos, baseados na força do capital, estimularam e investiram muito dinheiro na formação de atletas, transformando-os em heróis nacionais e recompensando-os financeiramente pelo sucesso nos jogos olímpicos. Como não podiam perder para os soviéticos, sob pena de validar o regime comunista, o talento esportivo tornou-se um dos principais critérios de seleção, inclusive nas melhores universidades do país.
Nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, então, em 2007, o primeiro lugar no quadro de medalhas ficou, obviamente, com os Estados Unidos. Permanece o ideal capitalista da nação mais rica do mundo e a estratégia de usar os resultados nos esportes como propaganda do regime.
O segundo lugar, bem, o segundo lugar ficou com Cuba, filhote socialista da extinta União Soviética. Fidel Castro manteve a preparação física e ideológica dos futuros atletas desde os primeiros anos de vida, fez deles superespecialistas nalguma modalidade e, durante os jogos, pressionou pessoalmente cada um dos competidores a fim de arrancar medalhas a qualquer custo. E recompensou muito bem os atletas medalhistas. Além de garantir algumas vantagens, tornou-os cidadãos de primeira classe aclamando-os os heróis nacionais.
Excetuando esses dois países, o Brasil, que não tem o esporte como prioridade nacional e também não tem que fazer propaganda política de regime algum, é o primeiro colocado no quadro de medalhas. Melhor assim. Crianças não devem ser usadas como objetos ideológicos; devem ser estimuladas a superar os próprios limites e, consequentemente, os limites da humanidade. Em 2016 seremos ainda mais primeiros.
Superesforço
Qualquer atividade exige de nós um determinado gasto de energia. Quando uma atividade qualquer – agradável ou desagradável – consome a quantidade de energia que normalmente designamos para ela, sentimo-nos satisfeitos. Temos a sensação de ter vivido intensamente ou de, no mínimo, ter cumprido uma missão.
Essas sensações, no entanto, não são tão elogiáveis. Quem desenvolve uma atividade enquanto tem prazer – ou enquanto não tem o desprazer de desenvolvê-la – apenas consegue ir até o seu limite. O melhor é ir além da área de prazer e continuar desenvolvendo tal atividade quando chega o desprazer. Vivemos para superar limites, quebrar recordes, para melhorar a espécie e a nós mesmos. O desconforto natural e imediato (e até a aflição) de após um esgotamento fisiológico torna-se um prazer quando reconhecemos, na superação, o próprio desenvolvimento.
Existe o prazer de realizar o que já podemos realizar e o prazer de aumentar a nossa capacidade de realização. Este segundo prazer é perspectivo. Oferece possibilidades inéditas. Existe na percepção de um desenvolvimento de potencialidades. Na constatação de que podemos ser bem melhores.
Quando estudamos, em casa, sozinhos, em função de um concurso público profissional ou vestibular, e estudamos até o cansaço, estudamos bem, mas não fizemos o melhor que podíamos. Quando estudamos além do esgotamento da energia pré-determinada pela nossa configuração cerebral, aumentamos a nossa capacidade de estudo. No exercício do superesforço, nosso corpo aprende a destinar uma quantidade maior de energia para a atividade em pauta.
Também quando nos sacrificamos para nos livrar de um vício, os primeiros sacrifícios significam apenas uma demonstração daquilo que já somos capazes de fazer e, logicamente, não são bastantes para nos ver resistir ao desejo que nos leva à dependência. Se esses sacrifícios já nos são possíveis e o vício também, nada mudou.
Se um fumante consegue ficar tranquilamente uma semana sem fumar, essa semana de abstinência não é suficiente para torná-lo um ex-fumante. O sucesso contra o tabagismo começa, nesse caso, depois de uma semana, quando o fumante consegue ficar sem fumar intranquilamente. Quando sente o desconforto e a necessidade, quando se estabelece o conflito “se quero fumar, tenho cigarros, por que não fumar?” e o sujeito encontra argumentos bastantes para não cigarrear.
Nossos corpos lidam com fatos. Se alguém passa a maior parte do seu tempo fazendo nada, seu corpo aprende a não destinar energia para as atividades que esse alguém não desenvolve. Da mesma forma, se alguém passa a maior parte do seu tempo lendo ou correndo, seu corpo passa a destinar uma quantidade maior de energia para essas atividades. O desconforto consequente de um esgotamento fisiológico é a base onde se constrói o prazer de se ter em pleno desenvolvimento.
Pecados da Ciência
Nos últimos cem anos, alimentamos um materialismo crescente que só nos distanciou do espiritualismo cultivado no idealismo do século 19. A medicina desbancou os curandeiros, a mídia dilacerou a inocência das histórias infantis, os revolucionários destruíram nossas ilusões. A Ciência tanto fez contra a espiritualidade que acabou “dando um tiro no próprio pé”. Os templos religiosos se multiplicam e faltam cadeiras para tantos fiéis justamente porque os cientistas prometeram e não cumpriram. Riram das convicções populares, mas não provaram ao mundo que a vida se limita ao que pode ser percebido pelos cinco sentidos.
Desde August Comte (1798-1857), o positivismo nos convenceu de que só tem importância social o que pode ser visto, ouvido, cheirado, tocado ou degustado. As crenças, os mitos, as lendas e as ervas milagrosas foram alijados do nosso cotidiano. Essa ciência positivista, no entanto, sentiu o prazer de desmoralizar a subjetividade romântica, mas não foi capaz de oferecer respostas substituintes às crenças populares.
Se os positivistas negam a existência religiosa de Deus, simplesmente porque não é um fenômeno material a ser visto ou ouvido, também não responderam às questões fundamentais que batem à nossa porta desde o princípio das civilizações: Quem somos? Donde viemos? Aonde vamos? Quem criou o mundo? Como surgiu a vida? Quem é Deus? Quem criou Deus? Deus nasceu Deus ou evoluiu a Deus? Se Deus evoluiu, também pecou à imagem e semelhança do homem? Por isso é tão misericordioso? Deus se fez conscientemente ou surgiu sem o saber e depois tomou conhecimento de si mesmo?
Se os céticos materialistas não têm respostas razoáveis a perguntas como essas, por que insistem em ridicularizar aqueles que também não sabem, mas acreditam naquilo que lhes faz bem? Se alguém está bem com suas respostas pessoais ou culturais, quem ousa desmerecê-las que venha com respostas outras convincentes. Só destruir não me parece uma atitude elogiável, aliás, parece-me gravemente reprovável. Tira a muleta sem curar o aleijado.
Um dos maiores responsáveis pelo caos social por que passamos está na lacuna criada pelos cientistas entre desmoralizar as crenças populares e não ter o que pôr em seu lugar. Os patologistas ironizam a medicina alternativa como se estivessem resolvendo todos os problemas desenvolvidos no corpo humano. E o homem comum, ainda analfabeto, também politicamente, não tem onde se apoiar. Um mundo com mais de 700 milhões de analfabetos precisa de autoridades com alguma sabedoria para manter alguns valores – mesmo questionáveis – que mantenham, no entanto, uma harmonia social necessária para uma evolução gradual e segura. A desmoralização dos valores populares não faz mais que apagar rumos pessoais e destruir objetivos culturais. O que seria do mundo se desde o começo ninguém tivesse medo de ir para o inferno?
Protagonismo Sênior
Os tempos são outros e os jovens também. Há décadas, eles não estão mais nas ruas fazendo passeatas de protesto contra as medidas conservadoras do governo federal ou as negociatas impressionantes dos deputados e senadores. Estão muito ocupados com os estudos, precisam arrumar o primeiro emprego ou se manter num cargo para continuar pagando um curso superior na rede particular de ensino.
Os jovens do século 21 têm menos tempo para as causas sociais. Os colégios e as universidades trabalham com muito mais conteúdo que no século passado e, por isto, exigem bem mais dedicação e esforço dos estudantes. O mercado de trabalho também está mais exigente, impõe a especialização e privilegia os profissionais mais bem preparados. Assim, os jovens se veem afastados das ruas e dos palanques porque estão com todo o seu tempo comprometido na luta pela sobrevivência e evolução.
As revoluções, então, estão acontecendo nas situações quotidianas. Se os adolescentes não estão se envolvendo com denúncias e movimentos sociais para dar a essas manifestações uma forma contemporânea, eles criam uma nova linguagem e dão uma nova imagem para as pequenas atitudes, aquelas menos coletivas, mais pessoais. Afinal, quem consegue melhorar a si mesmo já melhora muito a vida em todo o planeta. Talvez por isto, os jovens deste século não querem mudar o mundo, mas vivem a sua juventude com mais intensidade.
Distanciam a sexualidade da afetividade, porém conseguem mais prazer sexual que as gerações anteriores; não pensam muito, contudo têm mais informações que os seus pais; são consumistas, entretanto determinam o mercado e impõem a sua vontade; curtem muitas baixarias, todavia são menos hipócritas, têm menos vergonha dos seus sentimentos; não são extremistas como os jovens das últimas gerações, mas também não são marginalizados; são individualistas, porém preparam-se mais para uma carreira profissional; deixaram de lutar coletivamente contra as injustiças sociais, no entanto assumem-se como indivíduos dispostos a vencer.
Os mais velhos, os aposentados, aqueles que não têm mais que arrumar o primeiro emprego nem estão mais preocupados com o último, talvez tenha chegado a vez de esses homens e mulheres mais experientes tomarem as ruas, os palanques, as faixas e os microfones e reivindicar, juntos, com o apoio da juventude, a aprovação de leis e o cumprimento de medidas que possam pelo menos diminuir as injustiças sociais.
Se, noutros tempos, menos modernos, o normal era descansar na maturidade, hoje, o comum é usar o tempo disponível da aposentadoria para viver os prazeres que a vida oferece àqueles que venceram o período de trabalho pela sobrevivência. Por que, então, não participar do prazer de fazer valer a experiência acumulada de uma vida inteira em busca de um grande concerto, de un gran finale, de uma atitude com a qual possam enfrentar com mais sabedoria e confiança as injustiças todas sofridas e engolidas por falta de tempo ou de parceiros, ou até mesmo de coragem?
Os mais velhos estão livres para mudar o mundo. Estão livres dos patrões e não têm mais filhos para criar e educar. E independentes, porque não dependem dos pais e o salário da aposentadoria cai na conta dos caixas eletrônicos em todo o país.
Diziam no século 20 que quem não é revolucionário na juventude não tem coração e quem continua sendo depois dos quarenta não tem cabeça. Churchill, os tempos são outros.
Privilégios e necessidades
Paulinho da Viola venceu o IV Festival de Música Popular Brasileira, em 1969, com o texto e música “Sinal Fechado”: dois amigos se encontram casualmente diante de um semáforo; lamentam e justificam todo o tempo em que não se veem; o sinal se abre e novamente desaparecem. Essa canção venceu o quarto e último festival da TV Record quando Paulinho estava com 27 anos, cercado de jovens anticapitalistas que sonhavam com uma “casa no campo”.
Um sinal dos tempos. As pessoas não estão mais em casa esperando visitas. Nas faculdades brasileiras há estudantes com 40, 50, 60 anos de idade. Por mais que façamos, ainda assim fica a sensação de que não fizemos tudo quanto podíamos. Muitas perguntas, poucas respostas e o relógio, o calendário.
Uma das inúmeras diferenças entre o homem e os outros animais está no tempo disponível à evolução. Os animais irracionais não podem planejar e agir com o objetivo de acelerar seu desenvolvimento individual e especial. Gastam seu espaço cronológico lutando pela sobrevivência ou descansando para o próximo embate. Evoluem no ritmo de sua própria natureza. Nas intersecções (ou mutações) genéticas e na seleção natural darwiniana.
O homem pode gastar a cada vez mais tempo com sua evolução, pessoal e humana. Pode ler, pensar, estudar, escrever, inaugurar e aperfeiçoar habilidades planejadamente. Alguns alunos podem aproveitar a oportunidade de só estudar até os vinte e tantos anos, enquanto um animal, desde o seu primeiro dia de vida, gasta todo o seu tempo para simplesmente não morrer de fome ou de sede e se defender dos outros. Alguns alunos (infelizmente, apenas alguns) podem só estudar porque sua sobrevivência está garantida pelos “pais ou responsáveis”. Eles podem se concentrar nas aulas porque alguém está preparando o seu almoço etc. Isso é privilégio da humanidade. Um privilégio a cada dia mais necessário.
Não queremos mais apenas criar os filhos, “plantar uma árvore, escrever um livro”, manter algumas amizades e esperar pelo fim. Temos filhos, mas continuamos com nossos objetivos pessoais. Uma mulher não existe mais para ser apenas esposa e mãe. Talvez isso tenha colaborado com a desaceleração do crescimento populacional. Porque muitos filhos tomam parte do tempo que seria gasto em atividades de caráter individual.
Se no pós-modernismo de Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Elis Regina usávamos mais tempo que hoje com a sobrevivência e normalmente uma mulher não esperava mais de si mesma que ser “uma boa esposa e uma boa mãe”; se nas décadas românticas do século 20, anos 1960 e 1970, no tropicalismo de Caetano Veloso (“E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade / E quem há de negar que esta lhe é superior”), carecíamos da companhia dos amigos para não envelhecermos sozinhos; agora não queremos mais ficar em casa “esperando a morte chegar” (Raul Seixas).
A tecnologia nos oferece tempo (o trabalho braçal e repetitivo está por conta das máquinas) e ferramentas para crescermos mais em menos tempo. Isso nos põe em maior velocidade no distanciamento da condição animal. Podemos nos desanimalizar, nos humanizar, acelerar a civilização do homem. Não só podemos melhorar nossa qualidade individual como não podemos abrir mão desse privilégio-necessidade, pois nossos problemas sociais, econômicos e ecológicos são graves e urgentes e ainda não temos sabedoria suficiente para resolvê-los.
Materialismo Moderno
A Ciência se faz na desconstrução de mitos. Enquanto não sabemos, acreditamos. No deus do Sol, da chuva, dos raios, dos espíritos da floresta, mas, passa-se o tempo, depois de tantos sóis, chuvas, raios e nada, explicamos a condição transladante da Terra e as descargas elétricas das nuvens de hidrogênio e o mundo deixa de ser tão misterioso e amedrontador quanto antes.
O século 20 nos fez o favor de revelar os mecanismos lógicos de uma porção de fenômenos naturais e criar outra quantidade de fenômenos artificiais e, consequentemente, desfazer um tanto considerável de crenças infundadas. Próprias de uma civilização em desenvolvimento. De uma população que ainda se esforça intensamente para entender a vida. A Lua, por exemplo, deixou de ser um elemento místico para se tornar apenas um satélite, e alcançável.
As evoluções tecnológicas, no entanto, afastaram-nos de nós próprios. No decorrer o século passado, decepcionados com uma abolição e uma democracia distantes dos sonhos de Castro Alves, o ser humano se afastou de si mesmo. Acreditar em quem?
O advento das máquinas nas primeiras décadas de 1900 – telefone, rádio, toca-discos, automóveis, cinema, televisor, liquidificador, avião – somado às frustrações de uma república incipiente e um nacionalismo utópico, trouxe a maioria da população para a supervalorização do objeto e da embalagem. Um aparelho condicionador de ar é bem mais confiável que um companheiro de partido político.
Persistiu e persiste nisto o positivismo sedimentado nas últimas décadas de 1800. Só tem valor o que pode ser visto, ouvido, cheirado, tocado ou comido. E não tem autonomia.
Ignoramos deliberada e completamente o mundo além dos cinco sentidos. No materialismo moderno, a Ciência procura tornar visível o invisível. Justamente porque não tem valor social o que não é visível. Diagnosticamos pensamentos nas atitudes. Estados emocionais, nos sintomas.
Infelizmente, porém, isso tem um limite. Atitudes, sintomas são apenas pontas de icebergs. Desde Max Planck (1858-1947), não conseguimos observar menos que uma partícula de luz ou uma sequência de onda. Menos que isso é um mundo submerso indisponível aos nossos sentidos básicos. Depois de concluído o Projeto Genoma é que descobrimos quão complexos somos geneticamente. Sob cada um dos genes descritos existe uma história multimilenar, a construção da vida.
A verdade está sob todas as coisas. O visível nasce do invisível. Um homem não vê um átomo, mas se vê e não é mais que um montante de átomos. Nossa consciência nasce na lógica e a lógica não é um elemento audível, não é um objeto olfativo, não é um fenômeno palpável. Precisamos de uma capacidade bem menos rude que essa ciência laboratorial para compreender o mundo e a vida. Essa ciência que construímos a partir do materialismo moderno não pode ir além do tráfego de informações. Carecemos urgentemente de uma nova ciência. Menos simplista. Que não despreze a subjetividade: o maior dos valores humanos.
Maniqueístas e só
A imprensa brasileira já foi menos maniqueísta. Os leitores dos editorialistas e articulistas também já foram menos imprudentes ou mais cuidadosos em suas concordâncias ou discordâncias. Há jornalistas que nem merecem mais a atenção dos cidadãos bem informados. Escrevem sempre os mesmos argumentos contra as mesmas pessoas. Como se existisse algum indivíduo, em qualquer lugar deste planeta, que fosse genética e culturalmente tão simples e tão encadeado aos fatos do mundo exterior que só cometesse erros ou sempre acertasse e, mais, que invariavelmente agradasse ou desagradasse a todos.
Não somos personagens de telenovelas. Ninguém é completamente bom ou mau o tempo todo. O mais cruel dos homens chora a morte do filho. A mais piedosa das mulheres, pelo menos no primeiro instante, deseja a morte do homem que estuprou sua filha. Ninguém é perfeito e nem podemos ser. Nem merecemos ser julgados como indivíduos intelectualmente estáticos. Transformamo-nos em todo instante e os padrões que se refaçam.
Não posso cometer o mesmo erro e afirmar que todos os jornalistas são pobremente maniqueístas. Felizmente, há exceções. Infelizmente, porém, são exceções. Alguns conseguem superar sua condição animal e até conter suas vaidades para nos oferecer alguma qualidade no trânsito de informações e conclusões.
O jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa – programa semanal da TV Cultura – é um bom exemplo de cidadania na mídia. Profissionalmente, Dines não tem ideologia nem partido político. Não defende interesses pessoais ou de grupos econômicos. Está em função de uma imprensa que esclareça. Que faça um diário digno da nossa História. Que façam avaliações factuais independentes de quem sejam os personagens.
É compreensível, no entanto, esse maniqueísmo. Depois do golpe militar de 1964, o mundo político ficou dividido entre os anticomunistas da direita e os militantes da esquerda. "Quem está no meu lado é bom e meu amigo; quem está no outro time é mau e meu inimigo". Após a anistia política, em 1979, protagonizada pelo presidente João Batista Figueiredo, continuamos por algum tempo ainda usando os rótulos direita e esquerda para identificar candidatos e eleitores.
Nos anos 1980, a direita perdeu espaços sucessivamente, a esquerda conquistou vários governos e, naturalmente, deixou de ser unânime. E agora? Vamos governar do seu ou do meu jeito? A esquerda se fragmentou e continua se fracionando. São inúmeras as concepções políticas, tantas que não cabem nos dezenas de partidos políticos em atividade no Brasil. A maioria dos articulistas da imprensa brasileira, no entanto, continua dividindo o mundo entre bons e maus, partidários da direita e militantes da esquerda. Não conseguiram evoluir paralelamente às circunstâncias democráticas.
O amigo ou o inimigo é hoje bem menos fácil de ser identificado, justamente porque somos menos simples e o mundo se tornou mais complexo. Nem a direita nem a esquerda têm todas as soluções de que precisamos.
Menoridade e insegurança
Não é a idade que determina a responsabilidade ou a incapacidade de um indivíduo. Existem adolescentes que mais ensinam do que aprendem com os pais. Mulheres e homens casados bem mais irresponsáveis do que muitas crianças que aos 10 ou 12 anos de idade colaboram na sobrevivência e educação de irmãos mais novos.
Essa prática de estabelecer uma idade para direitos e deveres sociais é do tempo em que crianças nem sequer se aproximavam de armas de fogo e eleitores (que perderam filhos para a violência) não votavam em candidatos (a cargos públicos) patrocinados pelo crime organizado. Também porque naquela época os lobbies não eram tão imorais e comuns.
Na modernidade, descobrimos que os mais velhos não são tão sábios e honestos quanto pensávamos e os mais novos não são tão ignorantes e fora da lei quanto imaginávamos. Há jovens dirigindo com sucesso grandes empresas e homens experientes quase insubstituíveis em várias áreas do conhecimento humano. Do mesmo modo como pululam jovens completamente inconsequentes e idosos notoriamente estúpidos.
Isso sugere uma reavaliação das leis que impõem a idade como limite a direitos e deveres. Se uma criança, com sete ou oito anos de idade, comete um homicídio, essa criança não é normal, ou seja, não se inclui no padrão de comportamento considerado aceitável. Assim, essa criança não pode ter os mesmos direitos disponibilizados às crianças que se mantêm razoavelmente dentro das normas de convivência social.
A pena de reclusão não é apenas uma punição, mas também uma garantia da segurança dos demais cidadãos. Uma criança que não se limita dentro da normalidade social e comete um homicídio pode, obviamente, cometer outros crimes tão ou mais graves.
Existem, no Brasil, as casas de recuperação ou de ressocialização de menores infratores. Adolescentes criminosos são detidos e mantidos nessas casas até maioridade. Se essas casas cumprem seus objetivos é outra discussão, mas é bom observar que, neste país, menores são detidos, sim, quando cometem crimes. E são mantidos em reclusão sem direito a um julgamento, já que as leis brasileiras não permitem julgamento de menores de dezoito anos.
Na prática, qualquer criminoso responde pelo seu crime, com quinze ou cinquenta anos de idade. Estamos caminhando para um tempo em que a maioridade começa com os direitos e os deveres sociais. Se um jovem quer ser habilitado como motorista de automóveis aos 13 anos, basta ser aprovado em todos os exames. Há tantos péssimos motoristas com quarenta ou cinquenta anos. O fundamental é que o sujeito saia de uma autoescola tecnicamente habilitado e sabedor que a maioridade penal começa no dia em que o indivíduo comete um crime.
Amizade e Amor
A amizade é um treino para o amor. Quem não sabe ser um bom amigo não sabe ser um bom esposo; quem não sabe ser uma boa amiga não sabe ser uma boa mãe.
Desde que nascemos, conhecemos pessoas e vamos aperfeiçoando nossa capacidade de abordar, ouvir, falar – Onde está aquela timidez que me afastava de tudo que eu queria ser, tocar, sentir? Aprendemos a respeitar, recuar, ofender e nos arrepender, agredir e nos envergonhar.
As primeiras pessoas das nossas vidas são as nossas “cobaias”. Com elas – é recíproco, o aprendizado – melhoramos o nosso jeito de ser. Procuramos não cometer os mesmos erros nas próximas relações. Enquanto uns sentem a necessidade de falar mais alto, outros entendem que deveriam falar mais baixo. Há quem prefere perder um grande amor se esse não se revelar e há quem não perde um instante para revelar seus sentimentos mais fundos.
Um dia eu chorei e aprendi que isso é bom e que o mundo já não acha tão absurdo que um homem chore. Noutro dia, porém, contei um segredo e esse foi usado contra mim. Aprendi, então, que existe um mundo meu, o meu próprio universo, uma individualidade com a qual eu preciso aprender a conviver íntima e isoladamente.
Na amizade aprendemos a esperar, deixar pra depois, entender ideias alheias, aceitar comportamentos estranhos, emprestar, compreender e tolerar incompreensões, perdoar.
Numa relação de amizade perdemos a ingenuidade. Aprendemos sobre os limites de cada ser humano, de todos os humanos, deixamos de acreditar em superpessoas. Os super-homens e as supermulheres ficam nas histórias em quadrinhos. Crescemos e aprendemos a esperar menos dos outros. As decepções tornam-se menores e suportáveis.
A amizade e o amor se fortalecem mais nas incapacidades que nos sucessos. Justamente porque nas incapacidades nos sentimos mais iguais.
Infelizmente, nas relações de amizade, também perdemos a inocência. Aprendemos a adiar a verdade, a omitir, fingir, mentir. Aprendemos sobre males necessários, sobre imperfeições e leis de compensações. Uma pequena mentira pode ser melhor que a deflagração de uma relação de ódio. Dói dizer que algumas pessoas merecem algumas mentiras porque não conseguem compreender algumas verdades. Faz parte da evolução humana, do crescimento do indivíduo, merecer sempre a verdade.
Em contrapartida, por mais que tentemos esconder nossas fraquezas, depois de certo tempo, as verdades submersas, oprimidas, emergem naturalmente e os amigos se escancaram. Mentiras não sobrevivem ao tempo.
As pessoas que vencem os riscos das primeiras idades e amadurecem são melhores. Aprendem as ser calmas, sensatas, democráticas, pacíficas, igualitárias, fraternais, vivem e deixam viver. Depois de tanto errar, até menosprezar, desprezar e trair, podemos fazer de nós pessoas com as quais outras podem conviver agradavelmente durante décadas e até experimentar a felicidade.
Das Liberdades
Até o fim do século 19, o homem ocidental perseguiu as liberdades sociais, de nações, de classes, de grupos. Contra o autoritarismo das monarquias e o absolutismo da Igreja Católica medieval. Um homem não podia alterar sua condição social sozinho nem possuía interesses individuais. Suas necessidades eram as mesmas de todos os outros. Dependia de um momento propício, quando muitos outros estivessem igualmente indignados e dispostos inclusive a morrer em favor de circunstâncias sociais menos injustas.
Entre a Revolução Francesa e a Proclamação da República do Brasil, governos absolutistas sucumbiram diante do idealismo de uma maioria convencida de seu poder de transformação social. Começamos o século 20 com repúblicas, democracias e abolições. As estruturas sociais modernistas permitiram o redirecionamento das forças idealistas. Porque as revoluções sociais já haviam acontecido, pudemos, então, dedicar nossos esforços contra o desconhecimento, em favor das liberdades individuais.
Autoritarismo e conhecimento são coisas que não se juntam. Porque a verdade é livre, completa, inalterável e eterna. Só por isso, a justiça perde em curto, mas sempre vence em longo prazo. Os autoritarismos vitimaram bilhões de humanos, tiveram seus momentos de glórias, mas todos ruíram e ficarão no passado como tristes e inevitáveis experiências sociais.
Se a verdade é livre (aliás, só a verdade é livre), a liberdade individual implica atitudes em direção à verdade. O homem moderno quer o conhecimento para vencer o não sei e o não posso, para garantir sobrevivência e evolução.
O indivíduo é livre quando supera o determinismo. Quem consegue ir além do que a natureza, a sociedade e a família lhe ofereceram é livre. Senhor de suas decisões e dono do seu destino. Tem sua própria cultura, filosofia, moral. O homem é livre quando deixa de imitar os mestres (como bem fizeram os humanistas do século 15) para superá-los (como genialmente conseguiram os renascentistas do século 16).
O homem moderno não mais luta contra povos, classes ou grupos. Luta contra a própria ignorância. Ele muda o mundo mudando a si mesmo. Porque um mundo melhor compõe-se de pessoas melhores. Indivíduos que não se deixam manipular extinguem a figura do manipulador. Disse o sociólogo Jorge Benjor: “Enquanto houver otário, haverá malandro”.
Determinismo, Adeus!
O vestibular sepultou o determinismo. As provas de redação exigem o aprendizado das mais diversas modalidades textuais. Além das estruturas básicas (descrição, narração e dissertação): manifesto, conto, entrevista, carta de reclamação, verbete, resumo, paráfrase, fábula, ensaio, editorial. Alguém quer saber se o candidato nasceu com o dom da escrita? O que não nos chegou por meio da genética ou da cultura que nos chegue através do reconhecimento e da familiarização de técnicas.
O mundo contemporâneo nos estimula constantemente a superar limites genéticos e culturais. Primitivismos do tipo "isso eu não sei fazer", "não consigo comer sem aquilo", "sem competição não sai nada" estão desaparecendo. Se os românticos ficavam esperando inspiração para escrever seus poemas, os parnasianos nos ensinaram que a transpiração é uma boa ideia. O trabalho e a persistência são capazes de compensar carências e inaugurar outras possibilidades.
Nossas condições psicogenéticas não nos descrevem mais. Houve épocas em que não estudávamos nem trabalhávamos à noite; que sábados, domingos e feriados eram dias de extremo ócio; que a segunda-feira era o último dia a ser ocupado na agenda. Isso acabou. Hoje nos exploramos até o limite. Meu futebol é na segunda. Descansamos e dormimos menos proclamando nossa liberdade das imposições naturais.
No século 19, expressões do tipo "pau que nasce torto morre torto" e "diz com quem tu andas e te direi quem tu és" faziam muito sentido. As pessoas normalmente não tinham condições intelectuais e psicológicas para suplantar as determinações naturais ou sociais. Não estavam preparadas para enfrentar o mundo sozinhas.
Neste século, porém, pau que nasce torto desentorta ou racha: a vida é longa e os recursos são muitos. Diz com quem tu andas e continuarei sem saber quem tu és: estamos mais espertos, contudo os outros estão menos simples.
Não temos mais que nos casar para transar nem ter um monte de filhos para comprovar a masculinidade. Não somos mais fantoches do Estado, da Igreja ou da Burguesia. Minha profissão não vem de pai para filho nem a escola decide sozinha os termos da educação.
Desde os anos 1960, quando as mulheres resolveram que não seriam mais apenas esposas e mães, quando os filhos decidiram que não seriam cópias de seus pais, quando os estudantes se puseram nas ruas contra uma escola conteudista que ignorava as formas de aprendizagem, quando a sexualidade deixou de estar intrinsecamente associada ao casamento, quando o ocidente proclamou as liberdades individuais, nós nos assumimos. Abandonamos nossas históricas matrizes protetoras para anunciar “nós somos os nossos heróis”.
Graças a uma história de ousadias e mártires, podemos ser os donos absolutos das nossas próprias vidas, podemos escrever a nossa história e com alguma competência colocar nela um final feliz. Hoje Romeu se casaria com Julieta, D. Pedro I de Portugal reinaria com Inês de Castro e Simão Botelho dormiria com Teresa de Albuquerque.
Multiplicam-se filosofias e religiões justamente porque já podemos expor nossas peculiaridades, não precisamos mais esconder nossas particularidades, o mundo tem aprendido a conviver com as diferenças. Ainda há muito que fazer, isso é claro, mas não podemos negar que existe uma campanha maravilhosamente monstruosa em favor do respeito às individualidades. A ideia é fortalecer as unidades para que o resultado da soma seja admirável.
Erros Históricos
A História se faz bem mais de erros que de acertos. Não esperamos a perfeição para fazer o que tem de ser feito agora. Fazemos o melhor que podemos, obedecemos às nossas convicções. E normalmente erramos. E pagamos caro. Com patrimônios, lágrimas e vidas.
Mas o que seria do nosso mundo e de nós se não apostássemos em nossas certezas? Os românticos sonham, planejam e põem todas as fichas em seus ideais. Arriscam suas vidas pelos seus objetivos. Podia ser diferente? Não. É a condição humana. Erramos até o acerto. E esses erros não são deletáveis. Estão conosco e estarão em nós até o fim da espécie.
Quem tem medo de errar não tem chance de acertar. Medo de menos e medo demais não nos deixam viver. Quem não consegue apostar em si mesmo não merece o que quer. Apesar dos erros, nós, a humanidade, conseguimos evoluir, ininterruptamente. E, se temos uma qualidade de vida bem melhor que na Idade da Pedra ou do Fogo, podemos simplesmente condenar nossos erros?
O Golpe Militar de 1964 trouxe um período histórico de autoritarismo, censuras, traições, torturas, assassinatos em nome do anticomunismo. Estive nas ruas pela Anistia e pelas Diretas-Já! E por isto me viam e muitos ainda me veem como um típico militante da esquerda. Mas quem disse que nós queríamos um país comunista? Quem imaginou que nós gostaríamos de sair de uma ditadura militar de direita para nos submeter a uma ditadura militar de esquerda? Não queríamos isso nem aquilo. “Foi-se a ditadura militar / Foice e martelo não vão mais vingar” (Rita Lee). Queríamos democracia e foi o que conquistamos.
Contudo, quem pode nos garantir que, se o militares não tivessem deposto João Goulart, não viveríamos um período com igual ou mais autoritarismo, censuras, traições, torturas, assassinatos em nome do anti-imperialismo norte-americano? Os países do leste europeu, da “cortina de ferro”, são exemplos do que poderia ter acontecido ao Brasil. Quem quer um Ceaucescu de presente para ser seu presidente?
É muito fácil condenar quando imaginamos apenas dois lados e nos colocamos do lado do bem. Mas a vida é bem mais complexa. Existe a “terceira margem do rio” (Guimarães Rosa). Estamos sempre entre os extremistas egoístas que nos manipulam em função dos seus interesses pessoais e os extremistas altruístas que usam irônica e cinicamente a violência para impor “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Dar esmola pode ser um erro... E daí? Diante de tantos, que mal pode nos trazer um desacerto que beneficia alguém sem prejudicar ninguém? Há erros fundamentais com que nos preocupar. O homem que deixe de se ver como o objeto portador da verdade. O Estado que deixe de ser uma propriedade de uma minoria para servir de mediador das classes sociais em função de uma melhor qualidade de vida a todos. A Igreja que deixe de representar Deus para representar apenas a si mesma. Santos Dumont se matou, mas foi para o céu. Voou!
O poder da vaidade
Michael Schumacher, piloto de Fórmula 1, não resistiu à maior das vaidades: ser reconhecido pelo público. Em 2009, quando foi convidado pela Ferrari e aceitou substituir Felipe Massa depois do acidente, pensei: ele não vai correr. Disseram-me: ele já anunciou que vai... Não vai. Por que não? Porque não vai pegar um carro inferior, comer poeira e provar ao mundo que só se tornou heptacampeão porque tinha o melhor carro, a melhor equipe e um sancho pança para ajudá-lo.
Duas semanas depois anunciou que não mais substituiria o piloto brasileiro. Justificou com dores no pescoço consequentes de um acidente motociclístico e, por fim, contrataram Luca Badoer.
Em dezembro, ainda de 2009, a revista britânica Autosport publicou pesquisa que aponta Ayrton Senna como o melhor piloto de todos os tempos. Participaram do estudo 217 pilotos, que tiveram 270 vitórias em corridas de Fórmula 1.
O alemão não suportou. Treze dias depois da publicação da pesquisa, Schumacher aceitou o convite da escuderia Mercedes para disputar o título de 2010.
O carro era teoricamente inferior aos carros dos outros campeões. Mas era justamente isso que Schumacher queria ouvir da imprensa. Que o seu carro era inferior. Usaria todos os recursos contratuais, técnicos e regulamentares para provar ao mundo que nunca dependeu da qualidade do equipamento nem do companheiro de equipe para ser campeão.
Jenson Button, campeão mundial em 2009, quando soube que o alemão podia abortar a própria aposentadoria, disse que o piloto heptacampeão poderia prejudicar a sua reputação caso a volta não fosse tão bem-sucedida como o resto da carreira.
Todo o dinheiro do mundo, contudo, não compensa a ausência da satisfação pessoal pelo reconhecimento público. Schumacher arriscou a vida (estava com quarenta anos de idade) e a reputação para não ser apontado nem se sentir inferior a qualquer outro piloto. Ayrton Senna ainda era um adversário a ser vencido, apesar de ter feito sua última corrida no circuito de Imola, na Itália, havia 16 anos. O piloto alemão gostaria muito de vencer uma corrida como fez Senna, em 1985, com uma Lotus (na época, com um carro sem perspectivas de vitória) no circuito de Estoril, Portugal.
Schumacher é um bom exemplo de que o homem, mais do que ter títulos e dinheiro, quer ser reconhecido publicamente. É um desejo natural, fundamental. O reconhecimento público é o fim. É a satisfação suprema. Desde os nativos (índios, aborígines), quando o mais forte e destemido era o chefe da tribo. O homem é a criação mais complexa e sofisticada da natureza, portanto, a opinião de outro humano é a que mais conta.
Machado de Assis, em seu conto O Espelho, rascunha a descrição de uma alma exterior. Diz o narrador que “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Diz também que essas duas almas se completam, na configuração do indivíduo.
O protagonista do conto, um rapaz humilde, conhecido pelo diminutivo Joãozinho, foi nomeado alferes da guarda nacional. Toda a família ficou hiperbolicamente orgulhosa e passou a chamá-lo exclusivamente Alferes.
Numa ocasião em que visitava sua Tia Marcolina, o Alferes se viu sozinho por mais de uma semana: Tia Marcolina pediu que ficasse tomando conta da chácara enquanto socorria “uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte”. Os escravos aproveitaram a ausência da Tia Marcolina e fugiram. Assim, o nosso Alferes ficou só. Experimentou uma solidão extrema: o Joãozinho tornara-se ínfimo e dependente e não havia ninguém na chácara para chamá-lo por Alferes. Sofreu suas duas mais intimas ausências: sua alma interior, o Joãozinho, e também a exterior.
Veio-lhe uma ideia, enfim: vestiu-se com a farda de alferes e se pôs diante de um espelho. Pronto! Recuperou sua alma exterior. Viu-se o Alferes. A solidão extrema desapareceu. Reconfigurou a imagem do oficial construída pelos parentes e amigos. Pôde então esperar bem o retorno da Tia Marcolina.
Por que a opinião dos outros é tão importante?
O ideal de qualquer humano é a perfeição. O ideal construído individualmente, porém, pode ser equivocado, por isso precisa ser referendado pelo ideal coletivo. As sociedades então reelaboram constante e coletivamente o modelo do homem perfeito e, assim, todos têm o padrão coletivo como referência.
Existe uma reciprocidade entre as convicções individuais e sociais. Contribuímos individualmente na formação e no aperfeiçoamento de uma cultura e simultaneamente essa cultura nos oferece de volta um padrão e um ideal que nos garantem saúde psicológica.
Precisamos dos outros para saber quem somos. Asseguramos nossa identidade na intersecção com todos os outros humanos. Os aspectos comuns nos dão a segurança de que somos humanos e o ideal coletivo nos oferece a certeza de que estamos indo bem. E os aspectos incomuns, próprios, originais, particulares, esses nos individualizam.
O reconhecimento público, portanto, prova que somos humanos, que não somos comuns, que estamos entre os melhores, mais próximos do humano ideal.
A vaidade, então, é o combustível da evolução. Enquanto algumas pessoas espiritualmente mais pobres se esforçam apenas para sobreviver; outras querem bem mais que garantir a vida.
Schumacker voltou a correr em 2010, 11 e 12. Nesses três anos não conseguiu nem uma vitória, nem pole.
Machado publicou O Espelho em 1882, em seu livro de contos Papéis Avulsos, quase vinte anos antes das primeiras publicações de Freud. É pouco?
Avenida Carminha
O último capítulo da telenovela “Avenida Brasil”, de João Emanuel Carneiro – Rede Globo – alcançou 50,9 pontos de audiência no Ibope. É o recorde da televisão brasileira em 2012.
Isso não me inquieta nem me irrita. Mantém minhas esperanças. Ficaria abatido e desesperado se os telespectadores estivessem torcendo pelos bandidos.
Engana-se quem se convenceu de que minha mãe está acompanhando a telenovela porque acredita na trama e nos personagens como se fossem reais. Ela está curtindo os acontecimentos e as conclusões como um ideal. E é muito bom saber que a construção e a reconstrução familiar, a distribuição de renda e a justiça social são os ideais mais valorizados pela maioria da população brasileira.
É claro que os personagens idealizados e suas atitudes não são boas referências para o presente. Mas onde estão as pesquisas que comprovam esses personagens como modelos agora de comportamento? A televisão jamais teve o poder que os jornalistas atribuem a ela.
Em 1982, Roberto Marinho, um dos capitalistas que apoiaram o Golpe de 1964, era o dono da Rede Globo e procurava destruir a carreira política do socialista anistiado Leonel Brizola, cunhado do ex-presidente João Goulart. Brizola, que havia sido governador do Rio Grande do Sul, sentiu-se desafiado por Roberto Marinho e se candidatou ao governo do Rio de Janeiro pelo PDT. O empresário usou a TV Globo, Rádio Globo, Jornal O Globo e outros muitos meios, mas não conseguiu evitar a eleição de Leonel Brizola. Para comprovar a ineficiência da Rede Globo, Brizola se elegeu novamente ao governo do Rio de Janeiro em 1990. Onde está o poder da mídia? Brizola era um socialista num país de imigrantes, uma população naturalmente competitiva, propensa ao individualismo capitalista. Nem assim?
Ninguém inventa desejo noutros. Apenas estimulamos, fortalecemos, questionamos os desejos alicerçados nos sentimentos atávicos do sujeito. Cada qual tem sua história e dá prosseguimento a ela. Quando se inaugura alguma vontade é porque já havia no indivíduo as condições fundamentais para que tal desejo viesse a existir. Há coincidências e oportunidades. O mesmo Lula foi trucidado pelo Collor em 1989 e massacrou o PSDB em 2002. Perdeu três eleições à presidência antes de governar o Brasil. O sucesso depende da pessoa certa, no lugar apropriado, na hora justa. Os grandes líderes não o seriam se não houvesse uma multidão disposta a ser liderada. Hitler não inventou o ódio aos judeus para os alemães do meio do século passado.
Os autores de telenovelas conseguem audiências fenomenais porque conseguem identificar e satisfazer os ideais dos telespectadores. O escritor romântico não falsifica o presente; ele idealiza o futuro. Românticos como José de Alencar não mentiram com seus índios cristãos e poliglotas. Eles idealizaram uma origem forte e heroica para o homem do futuro, o brasileiro mais que mestiço, que chegará valente e invencível como na música “Um Índio”, do Caetano Veloso.
Alguns críticos ainda insistem na degradação dos ideais expostos nas telenovelas. Nessa vez, ouvimos insistentemente e num tom de falso ineditismo a frase shakespeareana “A vingança é um prato que se come frio”. Retrucou um amigo: E quem disse que eu gosto de comida quente?
Mesmo os nossos ideais não são os ideais. Não somos capazes ainda de elaborar ideais perfeitos. Justamente porque somos imperfeitos. Velamos os ideais que temos. Menos mal é que se elaboram em direção à dignidade humana.