"Não preciso de ninguém que me represente"

ou

3 maneiras de tocar no assunto "eugenia"

 

         No último fim de semana (23-24/07/2022), o FIT (Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto) disponibilizou nos palcos do Sesc-Rio Preto os espetáculos “3 maneiras de tocar no assunto”, “Traga-me a cabeça de Lima Barreto!” e “E.L.A”.

        No cenário das “3 maneiras de tocar no assunto”, há três subcenários: 1 – Uma bacia com água sobre um cubo de aproximadamente 50 centímetros; 2 – Um banco com espaço para três pessoas; 3 – Um pedestal com um microfone.

        No primeiro subcenário, o ator Leonardo Netto toca no assunto a partir da adolescência do personagem e outros LGBT+, pensando o bullying até a tortura por afogamento (na bacia com água sobre o cubo) e suicídios de crianças. No segundo, o texto de Leonardo Netto toca no assunto a partir da juventude do personagem e outros LGBT+ e a necessidade de interagir, de conviver, de se fortalecer psicologicamente em grupos, até a Revolta de Stonewall, em Nova York, 1969 – um dos marcos mais representativos da luta pelos direitos LGBT+; e, no terceiro subcenário, a direção de Fabiano de Freitas e Márcia Rubin toca no assunto a partir do personagem e outros LGBT+ adultos, representados pelo ativismo de um deputado que alcança a circunstância em que pode dizer: “Não preciso de ninguém que me represente”.

        O espetáculo recorre a vídeos, inclusive para não deixar que o esquecimento apague a eugenia (a teoria da viabilização e da aceleração da evolução da espécie humana através da limpeza genética), e os autores e os defensores dessa tese “cientifica”, alguns dos responsáveis pelas perseguições aos LGBT+, aos negros e às pessoas com deficiência.

        “3 maneiras de tocar no assunto” é envolvente e enriquecedor. Peca apenas quando o personagem ativista abandona a universalidade do assunto para se dirigir diretamente ao público LGBT+ e se defender em questões mínimas. Se amo uma pessoa, o nome dela não me tem a menor importância.

        No palco de “Traga-me a cabeça de Lima Barreto”, temos também três subcenários: uma cadeira, ao centro; uma microestante com alguns livros, uma garrafa de cachaça e um pequeno copo, à esquerda do ator; e, à direita, um aparador expondo o cérebro de Lima Barreto.

        Se as “3 maneiras de tocar no assunto” tematiza a eugenia-LGBT+, o “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” pauta a eugenia-negros. Este espetáculo também recorre a vídeos, inclusive para não deixar que o esquecimento inocente a eugenia, e os autores e os defensores dessa tese “cientifica”, alguns dos responsáveis pelas perseguições aos LGBT+, aos negros e às pessoas com deficiência.

        O ator Hilton Cobra, com suas capacidades artística e fisiológica invejáveis, realiza fluentemente o texto de Luiz Marfuz e a direção de Fernanda Júlia. Tomar água em cena para se recompor pode ser entendido satisfatoriamente como uma sincronia das limitações propriamente humanas do ator e do personagem. Aliás, o personagem Lima Barreto também alcança a circunstância em que pode dizer: “Não preciso de ninguém que me represente”.

        O cenário de “E.L.A” também conta com três subcenários: 1 – um subpalco, ao centro e ao fundo; 2 – um banco suspenso em cordas, à esquerda da atriz; 3 – um gancho-cabide, à direita.

        Embora a atuação de Hilton Cobra se aproxime do naturalismo, o desempenho de Jéssica Teixeira não é menos cerebral que o dos outros dois atores dos espetáculos abordados acima.

        Enquanto “E.L.A” problematiza a relação do corpo (ele) com o dono do corpo (eu), deixa-se claro que, se o corpo não pode se livrar da nem ignorar a materialização da própria história, o eu, que não ostenta qualquer narrativa, procura enxergar os outros menos superficialmente para não se julgar os mais punido de todos os humanos.

        Apesar da leitura da carta de sua mãe, em que denuncia a série de erros médicos que consequenciaram as deficiências da filha, este espetáculo, tal qual as “3 maneiras” e “Traga-me a cabeça”, não existem apenas para contar uma história: elaboram concepções contundentes da realidade.

        “E.L.A” também recorre a vídeos, inclusive para não deixar que o esquecimento inutilize as profundas dores causadas pela eugenia, e pelos autores e pelos defensores dessa tese “cientifica”, alguns dos responsáveis pelas perseguições aos LGBT+, aos negros e às pessoas com deficiência.

        A atriz Jéssica Teixeira também alcança a circunstância em que pode dizer: “Não preciso de ninguém que me represente”. Jéssica é uma pessoa com deficiência.

       Diante da boa e velha discussão a respeito da distinção ou não entre corpo e alma, Jéssica escancara sua condição: ele é um corpo com deficiência; ela não é um ser com deficiência. Jéssica é atriz. Jéssica é escritora. Jéssica é diretora. Jéssica é produtora. Jéssica se apresentou brilhantemente para centenas de espectadores do FIT-2022.

         Pessoas representam outras e isso é bom até que não seja mais necessário. Se já não precisamos mais de heróis, a humanidade terá atingido um estado festejável de desenvolvimento quando ninguém mais precisar de alguém que o represente. Viva Jéssica!

 

Trajetória muda do mundo ocidental

Uma leitura alternativa do espetáculo Mundomudo, da Cia. Azul Celeste

            Um homem sobrevive psicologicamente das esperanças que mantém consciente ou inconscientemente. A lâmpada-fonte ideológica do personagem está problematizada.  Alcança-a e a ajusta em acordo com o espaço-tempo em que se encontra.

            No período medieval, o senhor e o vassalo cumprem uma rotina de ordens e obediências. O senhor ordena porque é fraco, porque precisa de quem faça por ele. O vassalo obedece porque também é fraco, porque não consegue ser livre, não pode sustentar sua própria individualidade, não é capaz de traçar sua própria ideologia e moral, precisa de quem dê um sentido à sua vida.

          Senhores e vassalos, porém, esperam por um salvador. Que os liberte de uma existência limitada e coberta de medos.

            Quem não é capaz de traçar sua própria ideologia e moral vê-se obrigado a adotar a ideologia e a moral de quem as tem: os senhores. E esses senhores, porque oferecem um sentido para a vida de seus vassalos, impõem nessa moral suas vontades, inclusive as mais absurdas.

            Para que os vassalos não se cansem nem procurem traçar sua própria ideologia e moral, os senhores garantem pão e circo. Na imagem que o vassalo tem da realidade, o senhor lhe aparece com as cores de um palhaço: um homem bom, inofensivo, que lhe proporciona a distração que o distancia de uma tensão suicida ou revolucionária. Assim se perpetua o poder de quem tem ideologia e moral a oferecer.

            A Igreja trouxe o ideal do Paraíso e a moral cristã para um império sucumbido pela falência dos ideais de dominação do mundo. O catolicismo trouxe a salvação: um destino para a humanidade. Senhores e vassalos se dobraram à igreja romana.

            De repente, os cães ladram porque alguém está se aproximando, só pode ser o nosso salvador. Mas os sons triunfantes, anunciantes da redenção, desaparecem; os cães se calam e as duas classes medievais voltam decepcionadas à rotina.

            O antropocentrismo renascentista, no entanto, afasta os senhores da ideologia e moral cristãs. O vassalo, porque não tem contrapartidas por suas dores, mantém-se filiado ao teocentrismo medieval, esperando pelas compensações celestiais.

            As penas dos anjos do vassalo caem do céu e provocam reações alérgicas em seu senhor. O modelo católico apostólico não mais se ajusta a seus interesses.

            Os cães voltam a ladrar, mas os sons triunfantes, anunciantes da redenção, já não empolgam o senhor. E o salvador não chega. É só o caminhão vendedor de gás de cozinha.

            “Deus morreu, Marx também, e eu não estou bem”.

            Senhores e vassalos abandonam suas ilusões e se deixam embalar pelo prazer possível. Giram alucinadamente num circulo vicioso de prazer pelo prazer. Desprezam passado e futuro e se dedicam exclusivamente ao presente.

            Nessa alucinação encerra-se o ciclo do pão e circo. O vassalo alcança uma estrutura psicológica capaz de sustentar uma principiante individualidade. Vislumbra a própria ideologia e moral e abandona seu senhor, um homem incapaz de sobreviver sozinho, mesmo diante da fartura. Nunca sofreu necessidade suficiente para instigá-lo a ser criativo e produtivo.

            Num mundo com poucas lâmpadas acesas, o vassalo leva consigo sua: fonte de suas esperanças: objeto iluminador de um sentido para sua existência ainda injustificada.

            Antes dá o remédio ao senhor pela última vez por gratidão. O rei foi rei quando precisou de um rei. O senhor lhe deu uma ideologia/moral quando não podia engendrar alguma.

            Uma melancia espatifa-se no centro do circo como símbolo de abundância, diante de um senhor vencido pelo que deixou de ser.

            Ou seja: a natureza pode ser abundante, o mundo pode ser repleto de riquezas, contudo a vida humana não acontece nem brilha fora do corpo humano.

            A história do Mundomudo, no entanto, é otimista. Se o renascimento da individualidade, desde o século XII, não sobreviveu com o Romeu da Julieta ou a Inês de Castro de D. Pedro de Aviz – as instituições não permitiam a ascendência da subjetividade – esse renascimento triunfa no século XXI após a evolução das liberdades individuais proclamadas no século XX.

            A RESPEITO DA FORMA

            Antunes Filho prefere a fala reta (menos vírgulas, menos acidentada, mais impositiva) e o movimento pesado (de cabeça, tronco e membros) para eliminar vícios fonéticos e de gestos. Bob Wilson transforma atores em cenários e cenários em personagens também para eliminar a individualidade inequívoca dos atores. O interesse é trazer alguma expressão pura do personagem.

            A dramaturgia do silêncio consegue resultados interessantes, nesse sentido, quando não permite que a voz do ator nos afaste do status ficção do personagem. É o status “não existo” do personagem que nos permite a elevação para o mundo das ideias e a manutenção do pensamento livremente criativo. Os poucos grunhidos emitidos em cena – por serem expressões de sentimentos, não de ideias – não são suficientes para nos atirarem para fora do mundo inteligível.

            Pra não perder a piada, a direção sujou a imagem com a música do caminhão de gás: um signo manifesto do mundo sensível. Prejudica o valor dissertativo do espetáculo. Porque idiotiza o personagem. Traz a discussão para um nível inferior.

            A capacidade técnica dos atores para a distinção dos elementos narrativos e a configuração de uma percussão cênica saborosa é inegável, e explicada pelos trinta anos de envolvimento teatral da Cia. Azul Celeste, porém, a locomoção adotada, não criada, e afinada por Jorge Vermelho para o seu personagem Clóvis, não é limpa; traz consigo imagens anexas de outros personagens do cotidiano real (não virtual). Prejudica o valor narrativo do espetáculo. Porque não permite uma configuração adequada do personagem na cabeça do espectador.

            Se a narração é uma sequenciação de fatos, e o teatro está mais para a poesia que para a prosa, a dramaturgia do silêncio acerta primorosamente quando não emite justificativas nem possibilidades verbalmente. Privilegia a síntese e a sofisticação para o aspecto plástico das ideias.

MUNDOMUDO     Cia. Azul Celeste

Concepção: Jorge Vermelho     Dramaturgia: Cíntia Alves

Direção: Georgette Fadel     Elenco: Henrique Nerys e Jorge Vermelho

Assessoria de palhaçaria: Ésio Magalhães     Figurinos: Linaldo Telles

Costureira: Ivani Cardoso     Cenografia: Jorge Vermelho

Direção musical: Raphael Pagliuso Neto     Confecção de boneco: João Guerreyro

Produção executiva: Jorge Vermelho