Memórias póstumas de Brás Cubas

Machado de Assis

questões

Capítulo XXVII – VIRGÍLIA?
 
        Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, -- devoção, ou talvez medo; creio que medo.
         Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida e era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, – tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
         – Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?
         Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não, é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
 
1. (FATEC) – No capítulo XXVII, podem-se observar as seguintes características da prosa machadiana:
a) Romance de costumes, preocupa-se com reproduzir a vida na corte no século XIX. Purismo na linguagem.
b) Intromissão do narrador, que conversa com o leitor e idealização na composição das personagens.
c) Distanciamento dos problemas do seu tempo: escapismo; superficialidade na criação das personagens.
d) Quebra da estrutura habitual da narrativa; refinada ironia na composição das personagens.
e) Ceticismo, pessimismo em relação ao ser humano; romance histórico.
 
2. Considerando as Memórias Póstumas de Brás Cubas, qual a diferença entre “defunto autor” e “autor defunto”?
a) Não há diferença. Os termos são sinônimos.
b) Em “autor defunto”, defunto é substantivo; em “defunto autor”, defunto é adjetivo.
c) “Autor defunto” seria um escritor que teria tido a carreira literária interrompida pela morte; “defunto autor” seria quem começa a escrever depois da morte.
d) Nos dois casos, o primeiro termo é adjetivo e o segundo é substantivo.
e) “Autor defunto” é um morto que escreve e “defunto autor” é o escritor que morreu.
 
Capítulo LXXVI – O ESTRUME.
 
         Súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D. Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.
         Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.
 
3. A alternativa que contém a afirmação correta sobre o texto é:
a) O narrador revela remorso pelo papel a que se obrigou D. Plácida.
b) A personagem D. Plácida é apresentada como um ser de caráter firme e incorruptível.
c) O narrador busca uma justificativa de ordem prática para os seus atos.
d) D. Plácida é movida tão-somente pelo interesse material.
e) O narrador exerce uma ascendência – do ponto de vista moral – sobre D. Plácida.
 
(FUVEST-SP) As questões 4, 5, 6 e 7 referem-se ao trecho seguinte das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
 
         Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: a diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

4. (FUVEST-SP) o autor afirma que:
a) vai começar suas memórias pela narração de seu nascimento.
b) vai adotar uma sequência narrativa invulgar.
c) que o levou a escrever suas memórias foram duas considerações sobre a vida e a morte.
d) vai começar suas memórias pela narração de sua morte.
e) vai adotar a mesma sequência narrativa utilizada por Moisés.
 
5. (FUVEST-SP) Definindo-se como um "defunto autor", o narrador:
a) pôde descrever sua própria morte.
b) escreveu suas memórias antes de morrer.
c) ressuscitou na sua obra após a morte.
d) obteve em vida o reconhecimento de sua obra.
e) descreveu a morte após o nascimento.
 
6. (FUVEST-SP) Segundo o narrador, Moisés contou sua morte no:
a) promontório.
b) meio do livro.
c) fim do livro.
d) introito.
e) começo da missa.
 
7. (FUVEST-SP) O tom predominante no texto é de:
a) luto e tristeza.
b) humor e ironia.
c) pessimismo e resignação.
d) mágoa e hesitação
e) surpresa e nostalgia.
 
8. (UNIOESTE-PR) "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis [...]" Neste trecho, de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis:
a) surpreende o leitor com um vocabulário exótico e comparações inesperadas.
b) dá seu depoimento autobiográfico e impressionista, através de um estilo rebuscado e colorido.
c) explora com muita felicidade a "psicologia feminina", razão pela qual foi aceito com entusiasmo pelo público ansioso de uma literatura romântica.
d) focaliza o emergente proletariado fluminense e os interesses ocultos por trás de suas ações aparentemente triviais.
e) dá um exemplo da ironia e do humor característicos de sua obra, frutos de um profundo pessimismo.
 
9. Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, usa frequentemente uma função da linguagem a qual é capaz de manter o leitor distante da obra. O objetivo do autor é fazer com que o seu leitor acompanhe os fatos racionalmente, conscientemente, sem o envolvimento emocional desejado pelos autores românticos. Que função da linguagem é essa?
a) expressiva;
b) emotiva;
c) apelativa;
d) conativa;
e) metalinguagem.
 
10. Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, usa frequentemente uma figura de linguagem através da qual se diz algo querendo dizer o contrário. O objetivo do autor é fazer humor e manter o seu leitor acima dos fatos narrados para que não aconteça o envolvimento emocional desejado pelos autores românticos. Que figura da linguagem é essa?
a) metáfora;
b) metonímia;
c) prosopopeia;
d) ironia;
e) sinestesia.
 
11. O Humanitismo é uma filosofia do personagem Quincas Borba, constante do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. De acordo com as explicações do narrador, o Humanitismo:
a) defende a paz como o único recurso para a sobrevivência da espécie humana.
b) entende o ser humano como parte de um ser coletivo que se desenvolve e se eterniza com a nossa vida e a nossa morte.
c) acredita na guerra como um recurso próprio dos povos bárbaros.
d) prega a ambição e competição entre os seres humanos como a melhor forma de desenvolver a espécie humana.
e) é também a segunda escola da Literatura Portuguesa.
 
Texto para as questões de 12 a 15:
 
         A valsa é uma deliciosa cousa. Valsamos; não nego que, ao aconchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado. (...) Cerca de três semanas depois recebi um convite dele [Lobo Neves, marido de Virgília] para uma reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: — O senhor hoje há de valsar comigo. Em verdade, eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela deixou-a ficar,como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e giravam ... Um delírio.

Observação: o amor luxurioso entre Francesca da Rimini e Paolo Malatesta obriga Dante Alighieri a colocá-los no Inferno, em sua Divina Comédia. O livro que os perdeu é a narrativa do amor adulterino de Lancelote do Lago e Ginebra, mulher do Rei Artur – uma novela de cavalaria pertencente ao ciclo bretão.

12. Assinale a alternativa correta sobre o fragmento de Memórias Póstumas de Brás Cubas citado.
a) Pelo trecho destacado em “eu tinha fama e era valsista emérito”, subentende-se que o narrador acredita que nem sempre a reputação de uma pessoa é merecida.
b) O narrador cita uma singular sensação, mas contraria o que diz ao caracterizar de maneira banal essa sensação “incomum”: uma sensação de homem roubado (linha 03).
c) O emprego da dupla negação “não nego” revela que o narrador não quer admitir que a valsa lhe dava prazer.
d) A frase “não admira que ela me preferisse” expressa a causa do fato anteriormente mencionado.
e) A frase “como esquecida” equivale a “porque estava esquecida”.
 
13. Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: — O senhor hoje há de valsar comigo. Iniciando a frase acima com “Virgília recebeu-me”, e transpondo o discurso direto para o discurso indireto, a forma correta para completar o fragmento, sem alteração do sentido original, é:
a) acrescentando, graciosa, que eu, naquele dia, haveria de valsar com ela.
b) ao exclamar graciosamente que – O senhor hoje há de valsar comigo!
c) dizendo com graça que eu, naquele dia, havia de valsar com ela.
d) sugerindo, graciosa, que a personagem devia valsar com ela naquela hora.
e) declarando, com graça, que “o senhor tinha de valsar comigo” naquele dia.
 
14. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Considerando o contexto, assinale a alternativa correta a respeito da frase acima.
a) Ao citar Francesca, o narrador insinua que, na sua relação com Virgília, o delírio se resumiria a uma noite de valsas.
b) O leitor que não souber quem foi Francesca não saberá o que ocasionou a perdição dessa personagem, nem perceberá o paralelismo gramatical estabelecido, no período, entre um livro e a valsa.
c) Equivale a: “Se um livro poderia perder Francesca, aqui a valsa poderia chegar a nos perder”.
d) A partir de referência a situação similar, o narrador prenuncia a relação de adultério que viverá.
e) A aproximação de livro e valsa é sugerida com o objetivo de mostrar que perdeu tem sentido distinto em cada uma das frases.
 
15. Ao comentar a nova atitude narrativa assumida por Machado de Assis a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, um crítico assinala: O próprio narrador é contestado continuamente em sua versão dos “fatos” narrados, sendo desmistificado pelos outros ou por seu próprio discurso. A “verdade” do texto é uma questão de ponto de vista. Assinale a frase do fragmento do romance transcrito em que o próprio narrador insinua a dúvida sobre aquilo que está contando.
a) A valsa é uma deliciosa cousa.
b) não nego que, ao aconchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação.
c) Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: — O senhor hoje há de valsar comigo.
d) Em verdade, eu tinha fama e era valsista emérito.
e) Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela deixou-a ficar.
 
16. O escravo Prudêncio, que servia a Brás Cubas desde a infância de ambos, era vítima constante da tirania de seu senhor; mas quando cresceu e ganhou a alforria, teve ele mesmo seu escravo, e o tratava com os mesmos requintes de crueldade com que fora tratado. Não para vingar-se dos maus-tratos passados, mas porque a truculência não é um triste privilégio de classe ou de etnia: ela é humana.
A denúncia da crueldade do ex-escravo Prudêncio é um bom exemplo __________________ constante na obra de Machado de Assis.
a) do monarquismo
b) da metalinguagem
c) do caráter apelativo
d) do antimaniqueísmo
e) da elegância
 
17. Nas “Memórias Póstumas”, Marcela, a linda cortesã que manipulava e extorquia homens, como fez com o ainda adolescente Brás Cubas, transformou-se numa mulher de meia idade com o rosto desfigurado pelas sequelas da varíola, e chegou à velhice morrendo na indigência num leito miserável de hospital. Não restara nem uma centelha da ostentação do tempo de juventude; nem uma pérola das muitas joias que teve lhe valeu contra o avanço inexorável do tempo.
No caso de Marcela, Machado de Assis, feito um esgrimista, empunhando um estilo elegante e requintado, desfere golpes fulminantes e precisos contra a:
a) vaidade;
b) hipocrisia;
c) mediocridade;
d) egoísmo;
e) adultério.
 
18. (UCBA) Os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e O mulato, do último quartel do século XIX, inauguram concepções estéticas e filosóficas que se opõem ao:
a) Romantismo.
b) Realismo.
c) Arcadismo.
d) Naturalismo.
e) Simbolismo.
 
19. Algumas escolas literárias são sequências das anteriores no que diz respeito à visão de mundo. Outras se opõem. Assinale a alternativa em que a escola posterior opõe-se à anterior. Na forma e no conteúdo.
a) Romantismo e Realismo.
b) Trovadorismo e Humanismo.
c) Arcadismo e Romantismo.
d) Barroco e Arcadismo.
e) Renascimento e Barroco.
 
Capítulo LVI – O MOMENTO OPORTUNO

         Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta diferença?
         Um dia vimo‑nos, tratamos o casamento, desfizemo‑lo e separamo‑nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu‑me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê‑la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis‑nos a amar um ao outro com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença? 
         A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era oportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor; distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos. Esta explicação achei‑a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e tenazmente a galanteava.
         – Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva.
         Estremeci, fitei‑a, vi que a indignação era sincera; então ocorreu‑me que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquela mesma careta, e compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de importuno a oportuno.

DESPEITO: ressentimento produzido por desconsideração, desfeita, humilhação ou ofensa; pesar, melindre; desgosto motivado pela preferência dada a outrem ou por decepção; raiva, indignação, inveja, ciúme.
PINTALEGRETE: que ou aquele que se veste com apuro excessivo; casquilho, janota

20. Aponte a expressão interjetiva que denota irritação e que pode substituir “com a breca!”, sem perder o sentido manifestado no texto, no primeiro período.
a) raios me partam!
b) com mil diabos!
c) por Deus!
d) Santa Maria dos Desvalidos!
e) Virgem Maria!

21. A diferença a que o narrador se refere na primeira pergunta do texto contrapõe
a) o casamento tratado e o casamento desfeito.
b) um casamento com paixão e um casamento com amor.
c) a circunstância em que trataram e destrataram de casamento e a circunstância em que se viram amantes.
d) o rompimento de um casamento que acontece friamente, sem dor e o rompimento que se dá sob lágrimas e promessas de ódio.
e) o momento oportuno para o casamento e o momento inoportuno para o amor.

22. O narrador nos revela que, quando trataram de casamento, desfizeram o trato e se separaram, eles
a) estavam verdes para o melhor amor que podiam sentir.
b) não estavam prontos para amar tão intensamente.
c) se achavam prontos para um amor ordinário, comum, medíocre; mas imaturos para um amor ardente e cercado de compromissos.
d) estavam maduros para o amor de uma relação tradicional, mas estavam verdes para o amor de uma relação extraconjugal.
e) não estavam preparados para o casamento.

23. No segundo parágrafo, o narrador diz ter sentido “algum despeito” quando
a) tratou o casamento.
b) percebeu que seu amor era comum.
c) desfez o casamento.
d) entendeu que seu amor era incomum.
e) se separaram.
 
Capítulo CXXXIII – O PRINCÍPIO DE HELVETIUS
 
         Estávamos no ponto em que o oficial de marinha me arrancou a confissão dos amores de Virgília, e aqui emendo eu o princípio de Helvetius, – ou, por outra, explico‑o. O meu interesse era calar; confirmar a suspeita de uma coisa antiga fora provocar algum ódio sopitado, dar origem a um escândalo, quando menos adquirir a reputação de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo‑se o princípio de Helvetius de um modo superficial, isso é o que devia ter feito. Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina; antes daquele interesse de segurança, havia outro, o do desvanecimento, que é mais íntimo, mais imediato: o primeiro era reflexo, supunha um silogismo anterior; o segundo era espontâneo, instintivo, vinha das entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeito remoto, o segundo próximo. Conclusão: o princípio de Helvetius é verdadeiro no meu caso; – a diferença é que não era o interesse aparente, mas o recôndito.

(Capítulo 133 das Memórias Póstumas de Brás Cubas)
PRINCÍPIO DE HELVETIUS - Todos os comportamentos humanos estão fundamentados no interesse, que se trata de um impulso para a obtenção do prazer e a eliminação da dor.
RECÔNDITO – oculto, escondido, encoberto.
REMOTO – distante, antigo.
SILOGISMO – raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas premissas, das quais se obtém necessariamente uma terceira, chamada conclusão.

24. A palavra “sopitado” pode ser substituída, sem que prejudique o sentido do texto, por
a) evidente
b) gigantesco
c) passageiro
d) adormecido
e) vencedor
 
25. A palavra “interesse” foi zeugmatizada
a) cinco vezes.
b) quatro vezes.
c) seis vezes.
d) sete vezes.
e) três vezes.
 
26. No emprego do verbo “fora”, na oração “fora provocar algum ódio sopitado”, o narrador usou o
a) pretérito imperfeito em lugar do futuro do presente.
b) pretérito imperfeito em vez do pretérito mais que perfeito.
c) pretérito mais que perfeito em lugar do futuro do pretérito.
d) pretérito mais que perfeito em vez do futuro do presente.
e) pretérito perfeito em lugar do futuro do pretérito.
 
27. O trecho “Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina” caracteriza um dos recursos mais utilizados por Machado de Assis. Qual?
a) digressão
b) humor
c) intertextualidade
d) ironia
e) metalinguagem
 
28. O termo “desvanecimento” pode ser substituído, sem prejudicar o sentido do texto, por
a) desânimo
b) esquecimento
c) prazer
d) revelação
e) tristeza

29. O trecho “e aqui emendo eu o princípio de Helvetius, – ou, por outra, explico-o” caracteriza um dos recursos mais utilizados por Machado de Assis. Qual?
a) digressão
b) humor
c) intertextualidade
d) ironia
e) metalinguagem
 
30. Na oração “ou, por outra, explico-o” temos a elipse da palavra
a) filosofia
b) forma
c) maneira
d) razão
e) súplica
 
31. No trecho “dos amores de Virgília” temos, pela ordem,
a) adjunto adnominal e complemento nominal
b) adjunto adnominal e complemento verbal
c) adjunto adverbial e complemento nominal
d) complemento nominal e adjunto adnominal
e) complemento verbal e adjunto adnominal
 
32. Qual interesse determinou a confissão de Brás Cubas?
a) Abandonar os fatos ao esquecimento.
b) Evitar algum escândalo.
c) Não ressuscitar algum ódio já desfalecido.
d) Não se passar por indiscreto.
e) Sentir o prazer do reconhecimento público por suas conquistas.
 
         Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, ela morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, – uma pérola.

(Trecho do décimo quarto capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas)

33. O trecho acima termina com um exemplo de uma das características típicas de Machado de Assis. Qual?
a) digressão
b) humor
c) intertextualidade
d) ironia
e) metalinguagem
 
34. Com a expressão “uma pérola”, o narrador
a) descreve Xavier como um dos rapazes notáveis de sua época.
b) diz que Xavier era exatamente o tipo de homem que Marcela queria: rico e carente.
c) informa que Marcela realmente amava Xavier.
d) lembra a cena em que Xavier oferece uma pérola a Marcela.
e) se refere ao modo refinado de Xavier se vestir.
 
35. Assinale a alternativa incorreta.
a) A expressão “estouvamentos e berlindas” pode ser substituída, sem prejudicar o sentido da frase, por temperamentos e luxos.
b) Marcela era filha de um hortelão espanhol, mas mentia dizendo que era filha de um letrado de Madri que fora vítima da invasão francesa.
c) Marcela era uma moça tímida, inibida pelos rigores da moralidade de sua época.
d) O narrador diferencia a inocência rústica, natural, hortelã, camponesa, da inocência dissimulada, artificial, fingida, própria de uma mulher que se vê obrigada a respeitar a moral alheia, mesmo sem compreendê-la.
e) Quando diz “uma pérola”, o narrador reproduz uma fala que originariamente fora dita por Marcela.

36. Os termos “de dinheiro” e “de rapazes” devem ser classificados como
a) adjuntos adnominais
b) complementos nominais
c) objetos indiretos
d) predicativos do objeto
e) predicativos do sujeito
 
         Positivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se querem, mas era‑o, e então...
         E então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer‑me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; e tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
         - Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.
         Virgília replicou:
         - Promete que algum dia me fará baronesa?
         - Marquesa, porque eu serei marquês.
         Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Atila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.

(Quadragésimo terceiro capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas)

37. O oxímoro “diabrete angélico” exemplifica uma das características mais marcantes do Realismo e da obra machadiana. Qual?
a) antimaniqueísmo
b) digressão
c) intertextualidade
d) ironia
e) metalinguagem
 
38. A respeito do quadragésimo terceiro capítulo, assinale a alternativa incorreta.
a) Brás Cubas se tem como a um pavão diante de Lobo Neves, porque o deputado não era mais esbelto, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático que o narrador.
b) Lobo Neves é tido como a uma águia, porque se mostra oportunista, esperto e eficiente.
c) No episódio, Brás Cubas se espanta com o que pode fazer um homem inescrupuloso.
d) O narrador afirma que qualquer quantidade de beijo jamais seria capaz de conter a fertilidade da alma feminina, ao contrário, uma grande quantidade de beijo só aguçaria a sua capacidade para alcançar seus objetivos.
e) O personagem Lobo Neves mostrou-se destemido e imponente como um César.
 
39. O termo “tal”, no fim do segundo parágrafo, deve ser compreendido como
a) adjetivo
b) advérbio
c) pronome
d) substantivo
e) verbo
 
40. No quinto parágrafo, a oração “que algum dia me fará baronesa” é substantiva
a) completiva nominal
b) objetiva direta
c) objetiva indireta
d) predicativa do sujeito
e) subjetiva
 
41. Ainda no quinto parágrafo, o termo “baronesa” deve ser entendido como
a) adjunto adnominal
b) complemento nominal
c) objeto indireto
d) predicativo do objeto
e) predicativo do sujeito
 
         E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.

(Trecho do nono capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas)

42. Que função da linguagem é mais evidente no trecho acima, bastante usada por Machado de Assis?
a) conativa
b) expressiva
c) metalinguagem
d) poética
e) referencial
 
         Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos.

(Trecho do décimo capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas)

43. O segmento “uma graciosa flor” deve ser compreendido sintaticamente como
a) complemento nominal
b) objeto direto
c) objeto indireto
d) predicativo do sujeito
e) sujeito


RAZÃO CONTRA SANDICE
 
         Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
         La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.
         Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
         – Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
         – Está bem, deixe‑me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
         – Que mistério?
         – De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço‑lhe só uns dez minutos.
         A Razão pôs‑se a rir.
         – Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...
         E, dizendo isto, travou‑lhe dos pulsos e arrastou‑a para fora; depois entrou e fechou‑se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou‑se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente andará até a consumação dos séculos.

(Capítulo VIII das Memórias Póstumas de Brás Cubas)

44. No oitavo capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas temos dois personagens alegóricos.
a) Quem são eles?

b) Que conflito se estabelece entre os personagens alegóricos?

45. Observe o trecho “Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada” e assinale a alternativa incorreta.
a) “de lhe ceder sótãos” é oração subordinada substantiva completiva nominal reduzida de infinitivo, pois completa o termo “cansada”.
b) “experimentada” é predicativo do sujeito elíptico “eu”.
c) “lhe” é objeto indireto do verbo “ceder”.
d) O pronome elíptico “eu” representa o substantivo “Razão”.
e) “senhora” é sujeito do verbo “replicou”.
 
UMA REFLEXÃO IMORAL – Machado de Assis
 
         Ocorre‑me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempouma correção de estilo. Cuido haver dito, no capitulo 13, queMarcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia.Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todosos joalheiros desse mundo, gente muito vista na gramática.Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossosdixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comérciodos corações. Esta é a reflexão imoral que eu pretendia fazer,a qual é ainda mais obscura do que imoral, porque não seentende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer éque a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menosamada. Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcelaamou‑me...

(Décimo sexto capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas)

46. A respeito do excerto acima, aponte a alternativa incorreta.
a) A expressão “comércio dos corações” é caracteristicamente antirromântica.
b) Marcela, segundo o narrador, garantia a própria sobrevivência com os seus “amores pelo Xavier”.
c) A reflexão é imoral porque admite a colaboração do dinheiro na construção da beleza.
d) O narrador anuncia uma “correção de estilo” porque a frase “Marcela morria de amores pelo Xavier” é mais romântica que realista.
e) Por meio do vocativo “Bons joalheiros”, o narrador se dirige a todos os joalheiros para dizer que o amor seria maior e melhor sem as suas joias.
 
47. A respeito do primeiro período do excerto acima (“Ocorre‑me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempouma correção de estilo.”), assinale a alternativa incorreta.
a) “de estilo” é adjunto adnominal.
b) “uma correção” é predicativo do sujeito.
c) “ocorre” é verbo intransitivo.
d) “uma reflexão imoral” é sujeito do verbo “ocorre”.
e) “que” é sujeito do verbo “é”.
 
48. Indique a análise morfológica incorreta a respeito do período “Um terço ou um quinto do universal comérciodos corações”.
a) “ou” é conjunção alternativa.
b) "dos" é a fusão da preposição "de" com o artigo definido "os".
c) “terço” é numeral fracionário.
d) “um” é artigo indefinido.
e) “universal” é adjetivo.
 
49. No período “Cuido haver dito, no capitulo 13, queMarcela morria de amores pelo Xavier.”, o termo “morria” caracteriza a figura de linguagem denominada
a) hipálage (concorda o adjetivo com outro substantivo)
b) antítese (palavras opostas)
c) hipérbato (ordem indireta)
d) oximoro (palavras opostas que se contradizem)
e) hipérbole (exagero)
 
50. O período “Cuido haver dito, no capitulo 13, queMarcela morria de amores pelo Xavier.” É exemplo de que função da linguagem?
a) conativa (apelativa)
b) expressiva (emotiva)
c) fática
d) metalinguística
e) referencial (informativa)
 
51. O termo “dixes” pode ser substituído adequadamente por
a) compreensões
b) confianças
c) créditos
d) joias
e) talentos

52. Indique a alternativa incorreta a respeito do personagem Brás Cubas.
a) Os escritores realistas gostavam de personagens românticos. Construía-os para em seguida destruí-los ardilosamente, maquiavelicamente. O objetivo era demonstrar ao leitor as consequências desastrosas do romantismo pessoal. Brás Cubas, protagonista e narrador do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, apaixonou-se por uma prostituta, a Marcela, e acreditava no amor da bonitona.
b) Quando o pai o mandou estudar na Europa, exatamente para afastá-lo dela, Brás Cubas propôs a Marcela que fosse com ele. Imaginou que a dona dos seus sentimentos ouviria deslumbrada a proposta: viver na Europa, com ele, livre de qualquer despesa. Um sonho!
c) Marcela inventou uma desculpa e recusou o convite de Brás Cubas para viver na Europa. O rapaz saiu chutando latas. Contrariado por uma realidade que ele não reconhecia. Sofreu, mas um dia percebeu que Marcela não morria de amores, que Marcela vivia de amores: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
d) Herdeiro de um pai arrogante com os outros e permissivo com o filho, Brás Cubas não conheceu as ambições próprias de alguém que sofrera necessidades fisiológicas como a fome ou o frio, nem sabia abrir mão de algumas vontades para conviver. Conseguiu permanecer casado com Virgília durante alguns anos apenas porque, de certa maneira, o deputado Lobo Neves permitiu.
e) Brás Cubas podia e fazia tudo que queria e não queria mais do que podia. Fizeram dele um homem descarrilado dos paradigmas sociais. “Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento... Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

 
Os Cães
 
            – Mas, enfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito de uma das janelas.
            – Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
            – Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de indignação.
            Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas. Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta igrejinha”.
            – Magnífica ideia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...
            – Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.
            Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.
            – Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.
            Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo mais é grandioso: as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.

(Capítulo CXLI das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis)

53. Considerando o excerto acima, assinale a alternativa incorreta.
a) No período “Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo”, do último parágrafo, segundo Brás Cubas, convém aos grandes filósofos conter a alegria a fim de não demonstrar excesso de racionalidade.
b) Com a expressão “desmancha toda esta igrejinha” (quarto parágrafo), Quincas Borba se refere a um grupo de pessoas mancomunadas, conluiadas, ou seja, ajustadas em função de pequenos interesses comuns, frequentemente a fim de prejudicar outras.
c) No quarto parágrafo, com a frase “A palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria”, Brás Cubas nos diz que as palavras de Quincas Borba se encontram na melhor parte da sabedoria.
d) O narrador, com a frase “retemperar-se no calão do povo”, afirma que a linguagem filosófica normalmente se distancia da linguagem popular, mas às vezes volta para resgatar parte de sua naturalidade.
e) Nos dois últimos períodos do excerto, Brás Cubas parafraseia Quincas Borba para nos dizer que os recursos com que lutamos são mais importantes que os objetos das lutas, tanto que quando a luta envolve cães e homens o “espetáculo mais é grandioso”, pois nela se inclui a inteligência humana.

54. No terceiro parágrafo – “– Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de indignação” – o primeiro período é _____________ e o segundo é ____________.
a) exclamativo; descritivo.
b) declarativo; narrativo.
c) exclamativo; dissertativo.
d) interrogativo; descritivo.
e) exclamativo; narrativo.

55. O verbo “disse”, na frase “Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate”, no quarto parágrafo, só não é
a) declarativo.
b) abundante.
c) de elocução.
d) enunciativo
e) dicendi.

56. Na frase “Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão”, do último parágrafo, há duas palavras metafóricas: “arrancá-lo” e “arraigado”. Essas duas metáforas compõem uma única imagem ou circunstância. Que nome recebe esse recurso literário?
a) alegoria
b) coliteração
c) metáfora
d) antonomásia
e) comparação

57. Em todas as alternativas abaixo temos exemplos de metáforas, exceto:
a) “abrir um jornal”.
b) “fechavam a tribuna”.
c) “retemperar-se no calão do povo”.
d) “foi levar a sua fome a outra parte”.
e) “Vida sem luta é um mar morto”.

58. ANÁLISE MORFOLÓGICA: “Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal” – quarto parágrafo. Aponte a alternativa incorreta.
a) “ele” é pronome pessoal do caso reto, da terceira pessoa do singular.
b) “cumpria” é verbo da terceira conjugação, flexionado no tempo pretérito imperfeito do modo indicativo, empregado em forma impessoal.
c) “que” é conjunção integrante.
d) “se” é conjunção condicional.
e) “um” é numeral cardinal.

59. ANÁLISE SINTÁTICA: “Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal” – quarto parágrafo. Identifique a alternativa incorreta.
a) “abrir um jornal” é oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo.
b) “ao combate” é objeto indireto.
c) “cumpria-me” é oração coordenada assindética.
d) Na oração “se me fechavam a tribuna”, o sujeito está indeterminado.
e) “se me fechavam a tribuna” é oração subordinada adverbial condicional.
 
            Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.

(Capítulo 151 – Filosofia dos Epitáfios)

60. O capítulo “Filosofia dos Epitáfios” é predominantemente
a) descritivo
b) digressivo
c) metalinguístico
d) narrativo
e) satírico
 
61. O primeiro período do excerto é
a) descritivo.
b) descritivo e dissertativo.
c) dissertativo.
d) narrativo.
e) narrativo e descritivo.
 
62. O sinal grave de acentuação, a crase, indica a junção de uma preposição com o artigo definido “a”. No trecho “arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou”, qual preposição se junta ao artigo?
a) com
b) de
c) em
d) por
e) sobre
 
63. Neste capítulo, Brás Cubas se ausentava do cemitério. Estivera lá por ocasião da morte de
a) Cotrim.
b) Eugênia.
c) Lobo Neves.
d) Marcela.
e) Nhá Loló.
 
64. ANÁLISE MORFOLÓGICA. “eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou”. Assinale a alternativa incorreta.
a) “que”, de “que passou” é pronome relativo.
b) “gente” é pronome de tratamento.
c) “ao menos” é locução adverbial.
d) “que”, de “que induz” é pronome relativo.
e) “pio” é adjetivo.
 
65. ANÁLISE SINTÁTICA. “Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum”. Aponte a opção incorreta.
a) “que” é sujeito do verbo “sabem”.
b) “a tristeza inconsolável dos” é objeto direto.
c) “dos” é adjunto adnominal.
d) “talvez” é adjunto adverbial de dúvida.
e) “que sabem os seus mortos na vala comum” é oração subordinada adjetiva restritiva.
 
66. NORMAS GRAMATICAIS. “Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios”. Aponte a alternativa incorreta.
a) “afastando-me dos grupos, e fingindo” são orações subordinadas adverbiais de modo, reduzidas de gerúndio, porém coordenadas entre si.
b) “dos grupos” é objeto indireto; não é adjunto adverbial porque completa o sentido do verbo “afastando”.
c) “fingindo ler” é locução verbal, porque não indicam ações distintas.
d) “ler os epitáfios” é oração subordinada substantiva objetiva direta, reduzida de infinitivo, porque é uma oração, mas funciona como objeto direto do verbo “fingindo”.
e) “Saí” é oração principal das orações subordinadas adverbiais de modo, porque indicam a forma como o eu narrativo deixou o local: afastando e fingindo.
 
67. INTERPRETAÇÃO DO TEXTO. Destaque a alternativa incorreta.
a) Existe uma necessidade natural de individualização.
b) Não é comum a tristeza das pessoas que têm parentes enterrados em valas coletivas.
c) A singularidade dá importância à vida.
d) A singularidade dos mortos dá importância à vida dos vivos.
e) Os descendentes se sentem corroídos pela insignificância atribuída aos seus mortos que não puderam ou não souberam se particularizar.