cinema
Vik Extraordinário
No texto “A Paixão Segundo G. H.”, Clarice Lispector escreveu “Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mas a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso!”
Clarice expõe a limitação fundamental da literatura: “a pobreza da coisa dita”. A palavra, quando escapa, perde o mistério, o contexto e a profundidade que possuía na consciência do emissor. Lispector disse que “será preciso coragem”, mas quem me disse que eu entendi o que ela quis dizer com a palavra “coragem”? A mesma palavra representa vários significados em cada um de nós. O ideal seria que significado não precisasse de um significante, de uma linguagem. Que o significado fosse o seu próprio significante.
Antônio Vieira, o padre, escreveu “Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade de uso da razão”. A que tipo de amor ele se refere? Que concepção ele faz do amor? O que seus leitores entendem com a palavra amor? Dito ou escrito, o termo se reduz a um verbete. Perde a amplitude e o mistério que possuía antes de ser enunciado. Ganha o significado do dicionário.
Vieira usa adjetivos para tentar esclarecer suas ideias. Fala de um “amor vulgar” em contraposição a um “amor verdadeiro”, mas eu não vejo a possibilidade de um amor vulgar ou verdadeiro. Para mim, ou é ou não é amor. Se é verdadeiro, é amor; se é vulgar, não é amor. Aquilo que ele chama de amor vulgar, nos meus textos aparece com o nome paixão.
Da mesma maneira que a moldura e a tela participam inconvenientemente da pintura, as limitações de um instrumento participam inevitavelmente da música. A língua é um instrumento e dependemos do seu melhoramento para intensificar a claridade da filosofia. Justamente por isso, as artes contemporâneas querem ampliar os espaços dos signos. A imagem, a palavra ou o movimento precisam de contexto e profundidade para existir com alguma veracidade.
O artista plástico brasileiro Vik Muniz produziu uma série de fotografias com os catadores de material reciclável do Jardim Gramacho, do Rio de Janeiro, entre 2007 e 2009. Muniz, no entanto, não fotografou os catadores, ou as imagens que temos dos catadores. O artista produziu as imagens a serem fotografadas. Se entre o escritor e o leitor existe o texto a ser transposto; entre o artista plástico e o espectador existe o material que transporta a imagem de um sentimento. Esse material pode ser tinta sobre tela. Mas o que a tinta ou a tela tem a ver com o catador de recicláveis do aterro do Jardim Gramacho? Muniz optou pelo lixo. Pelo material com o qual seus personagens lidam em todos os dias. Porque esse material faz parte do sentimento a ser retratado.
Muniz dá mais alguns passos na realização do ideal modernista: incluir na superfície da imagem o que está dentro dela. Precisamos ver o que acontece dentro da nossa consciência sem literalmente olhar para dentro dela. Observamos um quadro de Salvador Dalí procurando decodificar a linguagem do cérebro nas imagens que participaram dos sonhos do pintor. Trabalhamos para transpor o sentimento, que é a nossa essência, para outros materiais, fora de nós, a fim de disponibilizá-lo à razão.
Usar na construção da imagem materiais semelhantes àqueles que predominam no imaginário do objeto da arte (os catadores de material reciclável) é se aproximar da transformação do significado em seu próprio significante.