O Cortiço
Aluísio Azevedo
trechos
CAPÍTULO 1 – João Romão e Bertoleza.
João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.
A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.
Quando deram fé estavam amigados.
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.
Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
– Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à peste do cego!
Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade, representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.
Não obstante, só ficou tranquilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte.
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante.
João Romão não saía nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela.
Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto.
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça.
...e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que, dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnífico para construir.
Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado.
Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da dívida pública, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem.
O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles. Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pai.
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade.
O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento.
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.
Durante dez anos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante já não era acometido tão frequentemente por aquelas crises que o arrojavam fora de horas ao dormitório de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na ocasião em que estes subiam para almoçar ou jantar.
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão.
– Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propus.
– Já disse o que tinha a dizer.
– Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo.
– Nem meio palmo!
– Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para alargar-se.
– E eu não cedo, porque preciso do meu terreno!
Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda.
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.
CAPÍTULO 7 – Brasa, Brasil.
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.
CAPÍTULO 10 – A desgraça de Marciana, a declaração de Jerônimo a Rita e a inveja de João Romão.
Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão.
O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:
– Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...
– Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.
– De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciência!
– Pois então ande com o dote!
– Que dote? Você está bêbeda?
– Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar!
– Ora, não me amole!
Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o delinquente.
– Agora deste para chorar, hein? mas na ocasião do relaxamento havias de estar bem disposta!
A filha soluçou.
– Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?
Florinda soluçou mais forte.
– Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão.
E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.
Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só carreira o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.
Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro assustado levantou-se entre as lavadeiras.
Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo que a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos, olhando para o espaço.
– Este galego é que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.
A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.
O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que despejasse o número 12.
Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o Miranda...
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie.
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.
Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro.
E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando.
Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos, Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar a vista de um ponto.
A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel, como um efeito de sugestão.
O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monólogo de demente. Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por ordem do inspetor do quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia deveras impressionada com tudo aquilo.
Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão:
– Meu bem! se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!
Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho à Rita, Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.
Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo.
A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até as canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grupado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.
Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.
João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos:
Não entra a polícia! Não deixa entrar! Aguenta! Aguenta!
Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata.
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.
Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.
– Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça!
– Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada.
Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d’água desabou cerrado.
CAPÍTULO 15 – Jerônimo e Pataca mais outro português matam Firmo.
Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate sem tréguas, parecia muito menor, minguava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros três não diziam palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistível vertigem de pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensanguentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar.
CAPÍTULO 16 – Jerônimo desapareceu.
Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jerônimo; ninguém dava noticias dele.
Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a voz emaranhada por uma agonia sufocadora.
E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode.
Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; lá não varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando árvores; lá a sucuruju não chocalhava a sua campainha fúnebre, anunciando a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para lhe dar o bote certeiro e decisivo; lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciúme de um capoeira; lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico.
Apesar do alívio que lhe trouxera ao espírito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento de passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um sobressalto vago e opressivo esmagava-lhe o coração [de Rita Baiana] e matava-a de impaciência por atirar-se à procura de notícias sobre as ocorrências da noite; tanto assim que, às onze horas, mal percebeu que Piedade, depois de esperar em vão pelo marido, saia aflita em busca dele, disposta a ir ao hospital, à polícia, ao necrotério, ao diabo, contanto que não voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo o trabalho pro canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou o mundo, também disposta a não voltar sem saber tintim por tintim o que havia de novo.
Nisto entrou a outra [Rita Baiana], acompanhada por um pequeno descalço. Vinha satisfeita; estivera com Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se mudaria logo para não dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais indispensáveis e que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana — zás! fazia-se a mudança completa, e adeus coração! — Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à mulher, dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura está livre, deixava de viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez de gozos.
Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma formidável pancada na cabeça.
E pegaram-se logo a unhas e dentes
Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo sangue:
– Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres comigo! Toma! Toma, baiacu da praia!
Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros opuseram-se ferozmente.
E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto.
Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.
CAPÍTULO 17 – O incêndio.
Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés.
...imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão, anunciando que chegava o corpo dos bombeiros.
CAPÍTULO 18 – João Romão rouba as garrafas do velho Libório.
Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Libório, depois de escapar de morrer na confusão do incêndio, fugia agoniado para o seu esconderijo, seguiu-o com disfarce e observou que o miserável, mal deu luz à candeia, começou a tirar ofegante alguma coisa do seu colchão imundo.
Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia dúzia delas. Depois puxou às pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a saída, mas soltou um gemido surdo e caiu no chão sem força, arrevessando uma golfada de sangue e cingindo contra o peito o misterioso embrulho.
João Romão atravessou o pátio de carreira e meteu-se na sua toca para esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era dinheiro em papel o que havia nas garrafas.
À meia-noite estava já completamente extinto o fogo e quatro sentinelas rondavam a ruína das trinta e tantas casinhas que arderam.
Em casa de Augusta, sobre uma mesa coberta por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da filha morta, todo enfeitado de flores, com um Cristo de latão à cabeceira e dois círios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o rosto escondido nas mãos, chorava, aguardando o pêsame das visitas...
O enterro da pequenita foi feito à custa de Léonie, que apareceu às três da tarde, vestida de cetineta cor de creme, num carrinho dirigido por um cocheiro de calção de flanela branca e libré agaloada de ouro.
...felicitou-o porque tudo estava no seguro.
– Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!...
Mas oito contos e seiscentos eram em notas já prescritas.
Ora adeus! mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe nas unhas. "E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com jeito... Hoje impingiam-se dois mil-réis, amanhã cinco. Não nas compras, mas nos trocos... Por que não? Alguém reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha... Para isso não faltavam estrangeiros e caipiras!...
CAPÍTULO 19 – A solidão de Piedade e a prosperidade de João Romão.
Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio.
Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.
O que custava aquele homem consentir que ela, uma vez por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão...
Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado como um charco podre que causa nojo.
Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São Diogo, onde trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova.
O português [Jerônimo] abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém.
Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati.
...gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.
Foi como se eu tivesse te morrido... mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!... Volta para casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do mês; e ele, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela ocasião? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda.
– Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jerônimo, a empurrá-las uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!
– Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá!
CAPÍTULO 20 – O sobrado de João Romão e a desgraça de Piedade.
De cento e tantos, a numeração dos cômodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas.
João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito.
Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dançar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.
Pataca revoltou-se, não com o procedimento de Jerônimo, mas com o dela.
– Pois não! O que não falta são homens, filha! O mundo é grande! Para um pé doente há sempre um chinelo velho!— E ferrou-lhe a mão nas pernas: — Chega-te para mim, que te esqueceras do outro!
Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras!
A pequena acordara lá no quarto e viera descalça até à porta da sala de jantar, para espiar o que faziam os dois.
Lá perto do fogão agarrou-a de súbito, como um galo abafando uma galinha.
– Larga! repreendeu a mulher, sem forças para se defender.
E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão.
– Olha que peste! resmungou a desgraçada, quando o adversário conseguiu saciar-se nela.
E deixou-se ficar por terra. Ele pôs-se de pé e, ao encaminhar-se para a sala de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena, que fora espiar à porta da cozinha.
– Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa! Olha! se há limão em casa passa-lhe um pouco atrás da orelha, e veras que amanhã acorda fina e pronta pra outra!
A menina desatou a soluçar.
CAPÍTULO 21 – A morte do Agostinho e o acordo para entregar Bertoleza ao dono.
Sim, sim, Visconde! Por que não? e mais tarde, com certeza, Conde! Eram favas contadas!
Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda.
Agostinho havia ido, segundo o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes.
– Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!
– Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu!
Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!
No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava quando João Romão tomou conta dela.
Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em metê-la como idiota no Hospício de Pedro 11, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor: entregá-la ao seu senhor, restituí-la legalmente à escravidão.
– Cem mil-réis!
– Não! dobre!
– Terás os duzentos!
– Está dito! Eu cá, pra tudo que for pôr cobro a relaxamento de negro, estou sempre pronto!
– Pois então logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito.
– E o resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!
CAPITULO 22 – Leónie, Pombinha e a filha da Piedade: o ciclo.
E o armazém, com as suas portas escancaradas sobre o público, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sair de novo, aos poucos, com um lucro lindíssimo, que no fim do ano causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender a retalho.
E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o "Cabeça-de-Gato" e sendo substituídos por gente mais limpa.
A sua comadre Léonie continuava a visitá-la de vez em quando, aturdindo a atual pacatez daquele cenóbio com as suas roupas gritadoras. Uma ocasião em que lá fora, um sábado à tarde, produzira grande alvoroço entre os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que se atirara ao mundo e vivia agora em companhia dela.
...mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira.
...a despeito do muito que amava à ingrata, rompeu com ela e entregou-a à mãe, fugindo em seguida para São Paulo. Dona Isabel, que sabia já, não desta última falcatrua da filha, mas das outras primeiras, que bem a mortificaram, coitada!
...daí a meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe.
A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgostos não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu único amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição.
...Dona Isabel mudou-se para a casa da filha.
...até cair de cama e mudar-se para uma casa de saúde, onde afinal morreu.
Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo, a cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara ela própria à Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.
...viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.
CAPÍTULO 23 – A morte da Bertoleza e o triunfo de João Romão.
– Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar presente...
– Ora essa! Então com quem se entendem eles?... Não! tenha paciência! é preciso que você lá esteja!
– Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
– E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.