Sentimento do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
parafraseando drummond
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite
O sentimento do mundo, de perda e desesperança, torturado pelas explosões da segunda guerra, esse sentimento se multiplica em mim. Tenho apenas duas mãos, mas estou cheio de escravos. Na minha memória, as pessoas me servem, estão sempre dispostas. Meus pais, meus irmãos, meus amigos, escritores, quitandeiras, suas experiências, ideais, convicções... Minhas lembranças escorrem e o meu corpo resiste com o que tem de amor.
Quando me levantar desta trincheira, a guerra terá destruído Deus e a fé. O céu estará morto e saqueado. Eu mesmo estarei morto, sem desejo e sem esperança. A vida, esse pântano sem acordes, estará morta.
Meus amigos não me disseram que havia uma grande guerra. O homem é mesmo surpreendente. Sinto-me excluído, desprezado, inútil. Não entendo de fronteiras e assassinatos. Humildemente peço que me perdoem.
Quando os corpos estiverem todos enterrados, eu ficarei sozinho, vasculhando as memórias do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer.
Esse amanhecer que não significa um novo dia.
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas,
sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Ita, pedra. Itabira, cidade de pedra. Preta. Pedra de ferro. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. Esse distanciamento das coisas e dos outros.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, carente de tudo que imagino, é doce herança itabirana. É doce porque me inquieta. Não gosto de ser quieto.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço nestes versos: esta estatueta de São Benedito delineada pelo velho artesão Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa, inclinada pela imensidão do mundo.
Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!
Poema da necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar, Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
Uma cultura quer que seus indivíduos cumpram suas determinações. Ouço as pessoas todas repetindo: é preciso casar João; é preciso suportar, Antônio; é preciso odiar Melquíades; é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país; é preciso crer em Deus; é preciso pagar as dívidas; é preciso comprar um rádio; é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque – a língua de todas as nações; é preciso estar sempre bêbado; é preciso ler Baudelaire – o poeta das flores do mal; é preciso colher as flores de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens; é preciso não assassiná-los; é preciso ter mãos pálidas e anunciar o FIM DO MUNDO.