Brasil
O Brasil da América
A palavra brasil significa lugar onde se guardam brasas. Nos fogões a lenha dos portugueses quinhentistas havia um compartimento (uma gaveta) onde as cozinheiras punham as melhores brasas a fim de estabilizar a temperatura do fogão e, quando precisavam aumentar o calor embaixo das panelas, tinham essas melhores brasas à disposição.
O navegador Pedro Álvares Cabral, quando chegou ao Brasil, deu-lhe o nome Ilha de Vera Cruz. Não tinha noção das dimensões da terra que descobrira, por isso concluiu que se tratava de uma ilha. Vera Cruz (cruz verdadeira) porque a descobriu seguindo, no céu, no fim da viagem, o Cruzeiro do Sul, e também para atender aos interesses da Igreja Romana. Anos mais tarde, já com uma noção menos rarefeita do tamanho do sul da América, renomearam-na Terra de Santa Cruz. Desta vez, para exclusivamente satisfazer o ideal de evangelização das terras conquistadas pelos portugueses.
A primeira riqueza explorada pelos colonizadores foi o pau-brasil. Que ganhou esse nome justamente porque, além de ser matéria-prima usada na construção de embarcações, era uma das melhores madeiras para vários fins, inclusive para cozinhar. Os restos dessa madeira que era usada na construção de naus e caravelas iam para os fogões das portuguesas.
Elas logo descobriram que essa lenha trazida da Ilha de Vera Cruz fazia uma boa brasa. Justamente por isso, no século 16, as brasas que mais se encontravam nos brasis das cozinheiras portuguesas eram dos restos da madeira trazida da Terra de Santa Cruz. Tornou-se, então, famoso, esse lenho, como pau de fazer brasas para o brasil, pau para o brasil, pau-brasil.
Os lusitanos que iam e vinham da metrópole para a colônia, do frio para o calor, de acima para abaixo do Equador, comparavam a estabilidade climática da Terra de Santa Cruz ao calor permanente dos brasis portugueses. Porque o reducionismo é uma tendência própria das regiões mais quentes, porque o calor é estafante, porque falar também gasta energia, depois da comparação vem a metáfora.
Brasil, portanto, é uma metaforização da comparação do calor predominante e desgastante dos Estados do Nordeste (O Brasil começou na Bahia?) com as gavetas de guardar brasas dos fogões a lenha da Península Ibérica.
O nome do nosso país, além de traduzir características climáticas das regiões tropicais do Brasil, é um nome marqueteiro. Os povos do frio normalmente gostam da ideia de um dia procurar um lugar onde haja menos preocupação com o clima e menos trabalho diário consequente de grandes e constantes quedas de temperatura. Os nórdicos desceram para a América em busca de opções.
Também por isso, vieram para as terras brasileiras pessoas de todas as partes do planeta. O frio mata mais que o calor e a estabilidade climática normalmente coincide com a prosperidade na agricultura. Roberto Carlos, o cantor, diria: O Brasil é uma brasa, mora?
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sob as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.
(O Cortiço, Aluísio Azevedo)
Um povo em construção
Portugal viveu a sua juventude no século XVI. Os portugueses se tornaram os maiores navegadores, descobridores e colonizadores do velho mundo e escreveram o maior poema épico do Renascimento: Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões.
As conquistas de Portugal resultaram da equação de vários ingredientes, coincidindo com o amadurecimento genético e cultural do povo português. O expansionismo europeu; o catolicismo ibérico, forte e evangelizador; a posição geográfica de Portugal, na porta de entrada do Mediterrâneo e de frente para o Atlântico; e a questão político-militar – os portugueses eram ameaçados constantemente pela Espanha – são fatores determinantes no espírito desbravador dos lusitanos. No século XVI, então, quando a nação dos lusíadas se viu genética e culturalmente pronta e esses ingredientes todos convergiram para o mesmo fim, os portugueses se tornaram os reis dos mares.
Assim aconteceu com os lusíadas e acontece com todos os povos. Todos temos um potencial genético e cultural a ser desenvolvido e um limite a ser alcançado. As condições genéticas e culturais dos lusitanos e as circunstâncias sociais e políticas em que se encontravam eram suficientes para conseguir tudo que conseguiram, porém, não podiam conseguir mais do que conquistaram.
É como contar com quatro algarismos e descobrir que podemos fazer várias combinações com três deles. Num dia, as combinações se esgotam e passamos a combinar quatro algarismos. As descobertas e as perspectivas se multiplicam. Noutro dia, porém, faremos todas as combinações diferentes possíveis com quatro algarismos e não conseguiremos fazer mais. Teremos alcançado o limite de combinações diferentes com quatro algarismos; teremos explorado toda a nossa potencialidade.
Portugal não podia conseguir mais do que conquistou e também não pode ter um segundo apogeu sem contar com novos elementos capazes de lhe proporcionar uma nova potencialidade. Aquela que dependeu do amadurecimento genético e cultural do povo lusitano e o levou às navegações e ao novo mundo, aquela já foi desenvolvida, já atingiu o seu clímax.
Naturalmente, um povo se transforma cotidianamente com a chegada de novos imigrantes, com as alterações ecológicas e as interferências políticas, mas essas transformações cotidianas são capazes de ampliar minimamente a potencialidade de um determinado país, apenas o bastante para mantê-lo em sincronia com o desenvolvimento circunstancial, afinal, se o resto do mundo evolui, uma nação tem de evoluir um mínimo apenas para não ficar para trás e preservar as conquistas do passado.
O Brasil, por sua vez, ainda não se realizou como nação. O povo brasileiro ainda não existe completamente, caracteristicamente. Ainda não chegamos ao fim do processo de miscigenação que se iniciou aqui no século XVI. Estamos amadurecendo genética e culturalmente. Linguisticamente. Um povo arquitetado pela mais intensa combinação de genes e comportamentos só pode resultar uma língua que seja o concerto de todos os idiomas ancorados neste brasil.
Mário de Andrade escreveu a maior obra nacionalismo crítico brasileiro, Macunaíma, para colaborar na compreensão de que somos um povo em formação. Segundo o intelectual modernista, o brasileiro ainda não existe, mas existirá quando se misturarem todos os tipos humanos que aqui desembarcaram e ainda desembarcam. Por enquanto, somos macunaimas: não temos mais o caráter do imigrante; nem temos ainda o caráter do brasileiro.
43% dos entrevistados se declararam mestiços ao IBGE de 2010. Quando esse número passar dos 50%, teremos cidadãos genética e culturalmente brasileiros. Então teremos à nossa disposição toda a potencialidade construída nesses 500 anos de miscigenação.
Um país por acaso
O Brasil só se tornou um país porque era e ainda é naturalmente grande e rico. Fosse pequeno e pobre, hoje seria um deserto. O objetivo dos portugueses era retirar daqui tudo que lhes fosse interessante e voltar a Portugal. A maioria deles, porém, não voltou. Havia fartura e enriquecimento bastante para segurá-los entre os trópicos. Ficaram e, sem querer, fizeram um país. Este é o primeiro grande detalhe da nossa história.
O segundo grande detalhe é que os europeus vinham sozinhos. Justamente porque não vinham para ficar. Deixavam noivas, esposas, pais e filhos prometendo voltar e ricos. Aliás, esta é a reclamação do Velho do Restelo de Os Lusíadas do Luís de Camões.
Os homens nasciam olhando para o mar e na primeira oportunidade abandonavam a terra em busca de fama e fortuna. Ficavam em Portugal as crianças, as mulheres e os velhos. Os rapazes, então, no Brasil, sem suas portuguesas, exercitavam sua sexualidade com nativas, africanas e assim se iniciou a miscigenação em terras brasileiras.
A estética da miscigenação é o terceiro grande detalhe da história do Brasil. As mulatas do Sargentelli atraíram centenas de milhares de turistas europeus obviamente porque a mistura de brancos com negros, índios, cafuzos, mamelucos, caboclos criou tipos físicos inéditos, originais. Os padrões de beleza originários dessas misturas só estimularam e aceleraram a intersecção genética no Brasil.
Os Estados Unidos da América também são evidentemente multiétnicos, mas não contam com os grandes detalhes que articularam a formação do povo brasileiro. Os nórdicos vieram à América para ficar, trouxeram suas famílias, formaram colônias e, circunstancialmente, não desenvolveram a estética da miscigenação.
Os norte-americanos, em regra, não se misturaram, apenas juntaram várias culturas já desenvolvidas para inaugurar uma nação onde o Estado pudesse garantir a liberdade, fomentar a prosperidade e assegurar as conquistas individuais.
A miscigenação psicogenética, no Brasil, trouxe consequentemente outras miscigenações: linguística, filosófica, religiosa, gastronômica, comportamental. Está em desenvolvimento uma língua brasileira, articula-se um pensamento culturalmente antropofágico, estuda-se o sincretismo religioso, tem carne seca na pizza, camarão na moranga e muito aos poucos estamos propondo um vestuário próprio a um país tropical.
A formação do povo brasileiro, portanto, depende dessa tal de miscigenação, exatamente porque não é simplesmente uma associação multiétnica; não somos as Etnias Unidas da América do Sul. A intersecção étnica é um processo inevitavelmente lento. Depois de 510 anos, o IBGE nos disse que a população parda (mestiça) está próxima dos 44%. Certamente, com mais 20 ou 30 anos, passemos do cinquenta por cento e nos tornemos autêntica e definitivamente brasileiros.
Independente por natureza
Em 1822, conquistamos nossa autonomia e, logo em seguida abolimos a escravidão, derrotamos a monarquia, fizemos uma república e instituímos um regime democrático. As pessoas que participaram desses fatos históricos, no entanto, mesmo com a independência, a abolição, a república e a democracia, essas pessoas chegaram ao fim do século 19 estranhamente decepcionadas. Nas duas últimas décadas desse século de revoluções, os brasileiros conviveram com um pessimismo profundo.
Porque é próprio da natureza humana pensar que uma conquista se realiza inteiramente no dia da sua proclamação. Quiseram os abolicionistas e republicanos que já no início do século 20 tivéssemos uma democracia exemplar, perfeita. Transbordando de paz, justiça, liberdade, igualdade e fraternidade.
Porém, hoje, mais crescidos, menos ingênuos, menos românticos, entendemos que, em setembro de 1822, não nos tornamos totalmente independentes, mas firmamos um ideal, estabelecemos um objetivo, determinamos um rumo para o Brasil.
É óbvio que essa nossa independência não é um modelo ideal, é claro que essa independência já conquistada ainda não é tudo que nós sonhamos, mas já é bem melhor que a dependência dos anos 1950, quando produzíamos cerca de 3 mil barris de petróleo por dia, menos de 2% das necessidades nacionais. Em 2006, a Petrobrás produziu quase 2 milhões de barris diários, suficientes para cobrir todo o consumo do mercado interno brasileiro.
Nos anos 1960, a Volkswagen veio para o Brasil explorar a mão de obra barata e com os alemães aprendemos a fabricar automóveis. Hoje somos um dos dez maiores produtores e exportadores de automóveis do mundo. O explorado explora o explorador.
Na Semana de Arte Moderna de 1922, no centenário da independência política, alcançamos nossa independência cultural. Os produtores e os artistas da Semana apresentaram uma arte conscientemente brasileira e atualizada. E, melhor, uma arte na qual nos vimos um povo em formação. Das caravelas portuguesas aos navios de imigrantes italianos, recebemos emigrantes de todos os povos.
Não só por isso, somos um povo independente por natureza. Não podemos nos livrar dos portugueses porque eles estão aqui, em nós. Não podemos nos livrar dos italianos, dos japoneses, turcos, libaneses, africanos, espanhóis, ingleses, franceses, alemães, russos, árabes, judeus, porque eles estão aqui. São partes de nós. Não temos de quem nos defender, porque os possíveis invasores já habitam este lugar. Nós somos os dominados e os dominadores. Somos simultaneamente todos os povos e nenhum deles.
Mas existe sim uma dependência. Precisamos nos livrar do etnismo. Da ideia de separar seres humanos em raças. As diferenças humanas são resultados de um mesmo homem noutro tempo e noutro lugar. Uma mesma pessoa noutro estágio de civilização e noutro ambiente apresentaria outras características fisiológicas. Relevar essas diferenças é preconceito, racismo, etnismo. Precisamos aceitar nossas diferenças, então seremos um povo completamente independente. Pronto para cumprir o seu destino de nação de todas as nações.
Mário de Andrade escreveu a maior obra nacionalismo crítico brasileiro, Macunaíma, para colaborar na compreensão de que somos um povo em movimento. Segundo esse intelectual, o brasileiro ainda não existe, mas existirá quando se misturarem todos os tipos humanos que aqui desembarcaram e ainda desembarcam.
Acredito nisso. Que um dia seremos conclusivamente brasileiros. E estaremos livres. Principalmente do etnismo. E, consequentemente, de qualquer forma de dependência.