A cidade e as serras

Eça de Queirós

trechos

CAPÍTULO 1 – O NASCIMENTO DE JACINTO.
 
    E quando soube que o Sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro – Jacinto “Galeão” correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto berrando furiosamente:
– Também cá não fico! Também cá não fico!
 
    Embarcou para França com a mulher, a Sra. D. Angelina Fafes (da tão falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o Cintinho, menino amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços [furúnculos]; com a aia e com o moleque.
 
    Jacinto “Galeão” comprou a um príncipe polaco, que depois da tomada de Varsóvia se metera a frade cartuxo, aquele palacete dos Campos Elísios, nº 202.
 
    ...morreu de indigestão [Jacinto “Galeão”], de uma lampreia de escabeche que lhe mandara o seu procurador em Montemor.
 
    No outono de 1851, quando já se desfolhava os castanheiros dos Campos Elísios, o Cintinho cuspilhou sangue.
 
    Como uma sombra, casou [Cintinho]; deus mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.
 
    Todos os seus amigos (éramos três, contando o seu velho escudeiro preto, o Grilo) lhe conservaram sempre amizades puras e certas – sem que jamais a participação do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidências do seu egoísmo.
 
    Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do Bairro Latino – para onde me mandara meu bom tio...
 
    Este Príncipe concebera a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”.
 
    Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!
    – Oh, Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
    Ele encolhia os ombros. A religião! A religião! A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno! Mas o telefone! O fonógrafo!
 
    Em 1880, em fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos... me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no Douro!
 
    Cheguei a Guiães... por ali me passaram docemente sete anos...
 
    Depois, num setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu...
 
    Acabei pela aldeia a roupa do luto. A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.
 
 
CAPÍTULO 2 – A CASA DE JACINTO, SETE ANOS DEPOIS.
 
    Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.
 
    Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone.
 
    ...sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma estranha e miúda legião de instrumentozinhos de níquel, de aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas.
 
 
CAPÍTULO 3 – ZÉ FERNANDES VOLTA PARA O 202.
 
    Todas elas se prendiam a sua sociabilidade, a sua civilização muito complexa, ou a interesses que o meu Príncipe, nesses sete anos, criara para viver em mais consciente comunhão com todas as funções da Cidade. (Jacinto com efeito era presidente do Clube da Espada e Alvo; comanditário do jornal O Boulevard; diretor da Companhia dos Telefones de Constantinopla; sócio dos Bazares Unidos da Arte Espiritualista; membro do Comitê de Iniciação das Religiões Esotéricas, etc.) Nenhuma desta ocupações parecia porém aprazível ao meu amigo – porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos, frequentemente arremessava para o tapete, numa rebelião de homem livre, aquela agenda que o escravizava. E numa dessas manhãs (de vento e neve), apanhando eu o livro opressivo, encadernado em pelica, de um carinhoso tom de rosa murcha – descobri que o meu Jacinto devia depois do almoço fazer uma visita na Rua da Universidade, ou no Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir por fidelidade a uma votação no Clube; acompanhar Madame d’Oriol a uma exposição de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos Trèves; comparecer ao funeral do velho Conde de Malville; presidir um tribunal de honra numa questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao ecarté... e ainda se acavalavam outras indicações escrevinhadas por Jacinto a lápis – “Carroceiro – Five o’clock dos Efrains – A pequena das Variedades – Levar a nota ao jornal...”.
 
    Já tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no Clube para o acompanhar depois ao Lohengrin na ópera) Jacinto arrochava o nó da gravata branca – quando no lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jato de água a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma névoa densa de vapor quente abafou as luzes – e, perdidos nela, sentíamos, por entre os gritos do escudeiro e do Grilo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as forças da Natureza, submetidas ao serviço de Jacinto, se agitassem, animadas por aquela rebelião da água – ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes elétricos sulcaram faíscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a névoa grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, atraídas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava política, uma multidão. E na escada esbarrei com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente “se havia mortos?”.
   Domada a água, clareada a bruma, vim encontrar Jacinto no meio do quarto, em ceroulas, lívido:
   – Oh, Zé Fernandes, esta nossa indústria!... Que impotência, que impotência! Pela segunda vez, este desastre!
 
   – Oh, Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te...?
   – Diana?... Diana de Lorge. É uma cocotte. E uma grande cocotte!
   – Tua?
   – Minha, minha... Não! Tenho um bocado.
        
    Eu teimosamente a considerava [Madame d’Oriol] como uma flor de Civilização; e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitara o terreno onde ela tão delicadamente brotara...
 
 
CAPÍTULO 4 – DESENCANTOS.
 
    Madame de Trèves não compreendera nenhum aparelho do meu Príncipe! Madame de Trèves não atendera a nenhuma dissertação do meu Príncipe! Naquele gabinete de suntuosa mecânica ela somente se ocupara em exercer, com proveito e com perfeição, a arte de agradar. Toda ela era uma sublime falsidade.
 
 
CAPÍTULO 14 – JACINTO E JOANINHA.
 
   – Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa... Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros... Em ruim corpo se esconde bom senhor!
 
   Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminoso olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta cima uma camisinha, de grandes laços azuis.
   E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira já de rosas.
 
 
CAPÍTULO 15 – OS FILHOS.
 
   E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Príncipe já não é o último Jacinto, Jacinto ponto-final – porque naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha, minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade.
 
 
CAPÍTULO 16 – ZÉ FERNANDES VISITA PARIS.
 
    Muitas vezes, Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima Joaninha. E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os espantos da minha serrana ante a Cidade! Mas depois conveio esperar que o Jacintinho completasse dois anos, para poder jornadear com conforto, e apontando já com o seu dedo para as coisas da Civilização.
 
    Uma certa Ana Vaqueira, corada e bem feita, viúva, que sentia as necessidades do meu coração, partira com o irmão para o Brasil, onde ele dirigia uma venda.
 
    Depois a minha égua morreu... Parti eu para Paris.
 
   Então, no compartimento solitário, bocejei, com uma estranha sensação de monotonia, de saciedade, como cercado já de gentes muito vistas, com histórias muito sabidas, que murmuravam coisas muito ditas, através de sorrisos muito estafados.
 
    Em cada face avistada à portinhola de um fiacre, suspeitava um bandido trabalhando; todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só por dentro podridão.
 
    À noite, nos teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo pilhérias senis.
 
   – Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas.