O Cortiço

Aluísio Azevedo

artigo

A pombinha do cortiço

         A personagem Pombinha, do romance naturalista O Cortiço, de Aluísio Azevedo, depende da primeira menstruação para se casar. Sua mãe, Dona Isabel, herdeira de muitos escrúpulos, entende que uma mulher não pode se entregar a um homem antes de estar pronta para a reprodução. O noivo de Pombinha, João da Costa, espera pacientemente pela primeira ovulação da menina.
         Pombinha, no entanto, tem péssimas referências masculinas e matrimoniais. Homens analfabetos, vencidos, possessivos e brutos participaram e participam de sua vida impedindo o fortalecimento de qualquer perspectiva positiva em relação ao amor e ao casamento. O retardamento das primeiras regras, então, significa o adiamento de uma relação íntima com um marido. O que ela podia esperar de um homem como o João Romão ou o Bruno? O Miranda, o Botelho, o Domingos ou o Jerônimo?
         Os homens do cortiço, o meio em que nasceu e cresceu, abortavam qualquer esperança de uma relação ideal entre um homem e uma mulher. João Romão só explorava o corpo e o trabalho da Bertoleza; Bruno espancava a mulher sem qual não conseguia viver com alguma estabilidade; Miranda à noite usava sexualmente a mulher que desprezava durante o dia; Botelho prestava qualquer tipo de serviço por qualquer dinheiro; Domingos engravidou Florinda e a abandonou; Jerônimo ignorou a miséria de Piedade e a desgraça da filha para ficar com Rita Baiana. Destruíram o ideal do príncipe encantado.
         No desenvolvimento da personagem Pombinha, o cientificista Aluísio Azevedo defende um determinismo psicofisiológico, ou seja, o ambiente determina não só o caráter e o comportamento do indivíduo, mas também a sua condição fisiológica. Os padrões masculinos do cortiço desenvolveram na menina uma condição psicológica que se manifestou em suas respostas físicas. O seu corpo não ovulava para que ela não se casasse.
         Essa aversão aos homens não é necessariamente homossexual. Pode ser apenas uma mulher, hormonalmente heterossexual, que não tem nenhuma perspectiva positiva com algum homem. Nem mesmo com o seu noivo. Que não morava no cortiço. Isso só nos revela que a aversão de Pombinha não se manifestava apenas diante dos homens do cortiço. Provavelmente, a aparência do Costa, o seu comportamento e suas ideias não prometiam uma boa vida conjugal a Pombinha.
         Rita Baiana, a sensualíssima mulata de Aluísio Azevedo, numa referência à Léonie, a prostituta, diz que “ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!”.
         Pombinha aprendera com os olhos, com os ouvidos, com as narinas, com as mulheres mais notáveis a perceber a estupidez e a fragilidade dos homens. Admirava Léonie e Rita Baiana, por exemplos, justamente porque dominavam a fragilidade masculina e assim evitavam a sua estupidez. Essa conclusa superioridade feminina afastava Pombinha do casamento. Se os homens são tão dignos de pena, por que me submeter a eles? Por isso não menstruava. Para não se casar.
         Alfabetizada e sem mais o que fazer, Pombinha presta-se a ler e escrever cartas aos muitos moradores do cortiço, conhecendo e reconhecendo as misérias daquela multidão de machos e fêmeas, nutrindo sentimentos como a piedade, o ódio e o nojo. “... ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a espécie, um exército de bestas sensuais, cujos segredos ela possuía, cujas íntimas correspondências escrevera dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos, porque a sua escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de dor e aljofradas de lágrimas”.
         Depois de uma iniciação sexual com Léonie, Pombinha menstrua e se casa com o Costa. “Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois anos de casada já não podia suportar o marido; todavia, a princípio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu-lhe, resignada, as confidências banais nas horas íntimas do matrimônio; atendeu-o nas suas exigências mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda a solicitude, quando ele esteve a decidir com uma pneumonite aguda... mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira”.
         Pombinha abandona o marido e assume completamente a sua vida. Da mesma forma como Léonie um dia a tomou por afilhada, pensando no dia em que os homens a julgariam velha, Pombinha põe-se a cuidar da filha de Jerônimo.