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A melhor fase da vida

       Como a juventude pode ser a melhor fase da vida se é a época em que somos mais ignorantes e temos menos dinheiro?
       A juventude ainda pode ser a melhor fase da vida, mas mudou de lugar. Não está mais entre os 18 anos e o casamento. Agora está entre os 25 e os 50 anos.

       Ainda lidamos com o mito de que entre os 18 e os vinte e poucos anos vivemos a melhor parte da vida. Em gerações anteriores, as pessoas se casavam nesse período, portanto o tempo de liberdade e aventuras se encontrava entre os 18 anos – quando o indivíduo atinge a maioridade – e o casamento.
       Desde o nascimento da inteligência, o homem persegue a liberdade. Não há na história revoluções que não ostentem a bandeira do homem que se quer livre – “libertas quae sera tamen”; “liberdade igualdade fraternidade”.
       O casamento, por sua vez, sempre foi visto como antônimo de liberdade, como o fim da individualidade. Então, o sujeito se via livre apenas entre a emancipação e o casamento.
       Esse é o período que nós chamávamos de juventude. Uma época de vigor físico e atitudes corajosas. Por isso, qualquer ordem, designação ou atribuição que subtraísse qualquer instante desse período era vista como autoritária, opressora, castradora, cruel e impiedosa.
       O mito da juventude existe porque tendemos a nos referenciar pelo ideal, não pelo real. O espaço entre a maioridade e o matrimônio é o que mais se aproxima do ideal de liberdade e realização.
       É indiscutível que a melhor fase da vida sempre foi a juventude: esse período em que somos mais autênticos, vigorosos, corajosos e dispostos. Nessa época, as decisões são mais frequentes, nossas experiências são mais intensas, arriscamos bem mais que depois. O resto da vida é pra ficar com os saldos e as saudades da juventude.
       Para o escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), autor de Sidarta e O Lobo da Estepe, “os jovens têm muito prazer e muita dor com as suas vidas, porque eles a vivem só para si, por isso todos os desejos e quedas são importantes, todas as alegrias e dores são vividas plenamente”.
       Parafraseando os velhos sábios, no entanto, nada é para sempre. O mundo mudou e as circunstâncias também. Hoje gastamos bem mais tempo que noutras épocas nos preparando para o embate social. Não nos basta mais aprender a profissão do pai. A preparação para uma vida economicamente independente agora requer décadas de estudo. E nessas décadas se incluem aqueles anos em que somos mais autênticos, vigorosos, corajosos e dispostos.
       Aquele tempo entre os 18 e os vinte e poucos anos deixou de ser uma época de realizações para ser um período de preparação. Gastamos nossa autenticidade, saúde, coragem e disposição para estudar. Profissionais ainda repetem: “passei os melhores anos da minha vida estudando”.
       E aqui está a questão: por que “os melhores anos da minha vida”? Porque neles havia mais autenticidade, saúde, coragem e disposição? Para quê? Para dar um “tiro no escuro”?
       Como a adolescência pode ser a melhor fase da vida se é a época em que somos mais ignorantes e temos menos dinheiro? A adolescência era a melhor fase da vida quando nos aposentávamos antes dos 50 e morríamos antes dos 60 anos.
       Nessa juventude em que as decisões são mais frequentes e nossas experiências são mais intensas prevalecem os sentimentos, que a razão é pouca. Mas o mundo hoje é menos sentimental. Aquelas atitudes explosivas, impulsivas, impetuosas, emotivas, tornaram-se, nalguns casos, ridículas.
       Estamos aprendendo a ser consequentes. A razão cresce na escola, diminuindo o poder dos sentimentos sobre os indivíduos. Realizávamos os nossos sonhos quando éramos fortes e românticos; hoje os realizamos quando somos intelectualmente maduros e realistas.
     Por outro lado, nós nos tornamos seres longevos. Não é mais espantoso chegar aos cem anos. Então, as quatro partes fundamentais da vida – a adolescência, a juventude, a maturidade e a anciedade – sofreram alterações significativas.

       A infância diminuiu. Deixamos de ser crianças mais cedo. A multiplicidade e a variedade de estímulos têm acelerado os processos dessa etapa. Mas a adolescência dilatou. Há filhos com 30 ou 35 anos que ainda saíram da casa dos pais. Que ainda não assumiram completamente suas próprias vidas.
       Do cruzamento intelectual de experiências e conhecimentos, a juventude, aquela época das realizações, foi removida para depois dos 25 anos. O desenvolvimento de projetos pessoais, sociais e profissionais está agendado para depois da Universidade.
       O avanço das ciências, com suas descobertas e invenções, tem alargado nossa consciência a respeito da realidade e concomitantemente a realidade tem-se tornado mais prazerosa, com suas ferramentas a cada vez mais precisas e suas oportunidades de entretenimento e lazer.
       Os brasileiros estão se casando, em média, com 27 anos de idade. Os cidadãos com curso superior estão se unindo matrimonialmente, em média, aos 31 anos. Porque as mulheres não são mais as submissas castradoras de antes da primeira metade do século 20, elas “topam qualquer parada” com seus maridos. Então o casamento deixou de ser o fim das aventuras e dos grandes desafios.
      Considerando que a expectativa média de vida brasileira está em 75 anos de idade, podemos supor que pelo menos 10% das pessoas com menos de 18 anos chegarão aos 100 anos, com saúde física e psicológica razoáveis.
      Assim podemos dividir a expectativa desses 10% em quatro partes, dentro de um projeto de vida.

       Observando que nos dois períodos polares – na primavera e no inverno – o indivíduo mais assiste do que participa da vida; os períodos centrais – o verão e o outono – podem ser considerados as melhores partes da existência humana: quando temos a saúde dos dois primeiros períodos e a sabedoria dos dois últimos.
       Conclusão: um estudante que gasta todas as manhãs e tardes, de todos os dias, inclusive dos fins de semana e feriados, estudando, não está perdendo nada. Ao contrário, está executando um projeto de vida inteligentíssimo. O estudante não deve se sentir sacrificado ou castigado, mas consciente de que à boate a que ele deixou de ir ele irá depois da Universidade, com emprego, carreira profissional, dinheiro no bolso, automóvel próprio e assuntos interessantes para conquistar gente bonita. Minha trisavó já dizia que o “apressado come cru”.
       Brincar é necessário e fundamental até o nono ano escolar. Quando o ensino ainda não é sistemático e sua finalidade se restringe a transformar habilidades em capacidades, de ler e escrever, por exemplo.
       Da primeira série do ensino médio até o fim do curso universitário, quando devemos transformar capacidades em competências e o conhecimento passa a ser linear e interdisciplinar, o aluno precisa estudar o máximo que pode. Para não se excluir das melhores opções que a vida vai lhe oferecer depois de sua profissionalização.
       O mundo moderno é bem mais exigente. Não basta querer ser honesto, por exemplo. É preciso competência para viver dentro da lei e convicção moral para não ceder às tentações do mercado. Quem não consegue ter acesso aos prazeres usufruídos pela maioria nem pagar suas contas em dia está condenado à ilegalidade. Na primeira oportunidade em que se sentir seguro para ganhar algum dinheiro rápido, esse alguém o fará.
       Menos fácil que alcançar um padrão de vida satisfatório é construir uma convicção moral capaz de blindar o sujeito das tentações do mercado. Mesmo com as contas pagas e alguns prazeres garantidos, a história oferece algumas oportunidades ilegais tentadoras. Para não sucumbir a elas, são necessárias convicção moral e responsabilidade.
       Considerando os princípios da existência humana – sobrevivência e evolução – a atenção à sobrevivência gera responsabilidade, para não colocar em risco a vida ou a liberdade própria e de parentes e amigos; a atenção à evolução gera convicção moral, para não ser humilhado nem “fechar as portas” de um futuro legalmente melhor e possível.
       É isso: quem não estuda não vai pro céu.

E se Jesus não tivesse nascido?

       E se Jesus não tivesse nascido ou não tivéssemos percebido sua existência?
       Antes dos profetas, a necessidade e o medo, exclusivamente, determinavam as nossas atitudes. Como um pássaro ou um elefante, além de satisfazer as necessidades diárias e básicas de sobrevivência, buscávamos proteção. E só. A vida não tinha um sentido. Não havia por que viver ou para onde ir. Apenas não queríamos morrer.
       E não havia uma razão qualquer para viver, simplesmente porque em nossas cabeças não havia passado nem futuro. Apenas o tempo presente. Os profetas são os primeiros humanos a desenvolverem a ideia de um tempo futuro. E o são porque conseguiram organizar um passado. A concepção de um passado é que nos possibilita a idealização de um futuro. A noção de tempo, a formação de passado e de futuro é que nos possibilita a estruturação de ideais e ideologias. Quem não tem um ideal não tem para onde ir.
       Exatamente por isto muitos indivíduos reorganizaram suas vidas, depois de vícios e crimes, e nos disseram que o conseguiram porque encontraram Jesus. Quem tem passado tem que ter para onde ir. E esses indivíduos puseram Jesus e o Céu, e o Paraíso, e o não inferno à frente, como meta, como finalidade.
     O nascimento de Jesus cristalizou a perspectiva dos ideais articulados e anunciados pelos profetas. A imagem de um paraíso possível se fortaleceu e se consagrou no cristianismo. Cristo teria vindo para ratificar as profecias. Para confirmar que existe um céu à disposição daqueles que se dedicam a Deus. E um inferno para aqueles que não o fazem.
       A configuração de um ideal, de um objetivo a ser alcançado; a imaginação de um lugar com vida perfeita e eterna organizou o mundo. Ocidental e oriental. Os povos antigos do Oriente não imaginaram um céu, mas idealizaram também uma vida perfeita e eterna. Por outro caminho.
       O Ocidente optou pela racionalização, enquanto o Oriente rumou para a negação da racionalidade, porém, mesmo abrindo mão da racionalização, os orientais da Antiguidade não deixaram de ter um ideal: a eliminação de todos os desejos e vícios para a reintegração absoluta do homem à Natureza.
       Antes dos profetas, as pessoas todas caminhavam para lugar nenhum, inteiramente egoístas, agindo apenas em função de necessidades e satisfações imediatas, esforçavam-se uma contra as outras, completamente entregues a seus instintos. Não existiam motivos para colaboração, amizade, compreensão, carinho, perdão.
       A constituição de um ideal pôs um mundo de pessoas na mesma direção, compartilhando os mesmos objetivos, dando nascimento à solidariedade. Ela, a solidariedade, só existe onde há interesses comuns. Se as necessidades iguais nos fazem adversários e inimigos, os ideais comuns nos fazem solidários e amigos.
       A Moral se estruturou a partir do monoteísmo cristão. As normas de conduta para se alcançar outro objetivo, além da sobrevivência, foram criadas com a finalidade de merecer o Céu e simultaneamente de se livrar do Inferno. Não matar, não roubar, não cobiçar a mulher alheia, não se entupir de comida nem se deixar levar pela promiscuidade são mandamentos estipulados para nos manter em direção ao Paraíso.
       As cidades bíblicas Sodoma e Gomorra são os exemplos clássicos do resultado da coexistência de indivíduos sem rumo, sem ideais: sem rumo, não há moral; sem moral, “salve-se quem puder”.
       As leis são posteriores à Moral. Historicamente, a Moral completa a Ética; e a Lei existe para reparar o que a Ética e a Moral não conseguem conter.
       A perspectiva de um paraíso pacificou quanto pôde um mundo prestes a se perder na busca egoísta de um prazer pelo prazer imediato. Isso é a salvação. Cristo nos salvou da autoextinção. A ausência da Moral nos condenaria ao desaparecimento.
       Num cenário de necessidade e medo, os mais fortes física e ou economicamente dominam e determinam a configuração dos fatos. Só por isso Jesus era ouvido principalmente pelos pobres. Porque os ricos não tinham reclamações, não estavam insatisfeitos. Num mundo sem passado e sem ideais, os mais poderosos vivem plenamente. Com fartura e sem medo do Inferno. Sem Moral, não há pecado. Os privilegiados satisfaziam todos os seus desejos, sem qualquer culpa.
       Os pobres, sim, sofriam a força dos dominadores. E então esperavam pelo Messias, pelo Salvador. Dispuseram-se a cumprir os mandamentos cristãos em função de outra vida, menos sofrida. A perspectiva de um céu, ao lado do Criador, tornou a vida dos pobres menos insuportável.
       Os ricos, no entanto, também passaram a ter a necessidade de um ideal. Porque o processo de humanização ou civilização é dinâmico, aumenta-se constantemente o volume de informações e conhecimentos. Só vive bem sem ideal quem não conhece o passado. Livrar-se do fogo do Inferno passou a ser o objetivo final dos empoderados.
       Se, mesmo com a ameaça de uma eternidade no Inferno, o homem cometeu atrocidades indescritíveis; como teria sido a História sem a convicção de que haveria punição cruel às almas pecadoras?
      O politeísmo caiu com o Império Romano. Os deuses fracassaram. Não dominaram o mundo intelectual (Grécia Antiga) nem territorial (Roma). No século VI d.C., o homem e a humanidade sofreram sua primeira crise depressiva. A Alta Idade Média significa o que se ofereceu ao homem para que não sucumbisse definitivamente.
       Ateus dizem que o mundo seria melhor sem deuses, porque não haveria quem torturasse e matasse em nome deles. É verdade. Mas também é verdade que o ateísmo não criaria um mundo promissor. Porque é inerte, não inventa. É fácil e agradável ser ateu dentro da realidade arquitetada pelo cristianismo, mas ser ateu sem o cristianismo seria simplesmente sobreviver, como qualquer outro animal, em circunstâncias inóspitas.
       Os ateus negam a religiosidade, mas não abrem mão das benesses alcançadas pelo homem que aprendeu a sonhar um paraíso, um mundo próspero e justo, em que se pregam a paz e o amor. Se o Céu e o Paraíso são ilusões, isso não tem a menor importância. Vale o que vamos conseguindo nessa direção.
       O desenvolvimento da inteligência trouxe a necessidade da Moral. A multiplicação de possibilidades fez emergir a necessidade da limitação do comportamento. E sem um fim que desse sentido às nossas vidas, não haveria a Moral.
       Se Cristo, Confúcio ou Buda não tivessem nascido, certamente teríamos encontrado outros caminhos para nos civilizar e nos desviar do caos provocado pelo advento da inteligência, contudo estaríamos bem mais atrasados no processo de humanização.
       Apesar dos poetas, não temos todo o tempo do mundo. As circunstâncias se modificam constantemente e as oportunidades desaparecem inevitavelmente. A Terra é um planeta velho. Se não tivéssemos evoluído tanto quando evoluímos (por pouco que seja), não teríamos condições culturais e tecnológicas para enfrentar os desafios que a Terra nos apresenta.
       Criamos muitos problemas, mas aprendemos talvez o bastante com os nossos erros para resolvê-los. Sem Cristo não teríamos nem a chance de cometer os nossos equívocos mais modernos e sofisticados. A complexidade do erro também é índice de evolução.

Estresse de civilização e exacerbação da autoestima

     Há casos em que é menos difícil passar no vestibular de medicina da USP do que sair ileso do trote. Na audiência pública da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, do dia 11 de novembro, houve relatos de humilhações, castigos, torturas e estupros. Castigos inaceitáveis como enfiar creme dental no ânus do calouro por conta de uma insubordinação. Estupros cometidos de formas tão perversas que dificilmente seriam caracterizados em um júri. Frequentemente, rapazes embebedam garotas ingênuas ou desavisadas, adicionam entorpecentes às bebidas das meninas, abusam dos corpos delas, mas não deixam marcas para depois acusá-las de promiscuidade.
     A liberação dos instintos ainda é uma prática bem votada para combater o estresse da civilização. Exatamente. Civilização cansa. Manter-se dentro das regras de convivência em direção ao sucesso cansa. Estressa. Então tiramos alguns dias para relaxar. No resort ou no hospital. O cliente escolhe. O carnaval surgiu dessa necessidade de abandonar, pelo menos por alguns dias, a camisa de força do processo de desanimalização.
     Esses aspirantes a médicos chegam à Universidade depois de anos de cursinhos, estudando em finais de semana e feriados. Na preparação para os exames, esgotam suas pilhas de persistência, disciplina e resistência. Quando passam pelo vestibular, relaxam. Querem não cumprir regras, horários, roteiros, rotinas, planos, projetos. Se a civilização cansa, obedecer aos instintos feito animais selvagens descansa. Premiam-se com a possibilidade de estarem aquém da ética, da moral e da lei. E se julgam merecedores de poderes primitivos como humilhar, castigar, torturar e estuprar. Querem ver a superioridade que conquistaram. Querem executar uma ideia. De que me vale a superioridade se não posso praticá-la?
     O exame vestibular de medicina da USP é um dos mais concorridos do Brasil, os vencedores naturalmente se sentem muitíssimo superiores a todos os outros candidatos e a todos os outros indivíduos que nem se atreveram a disputar uma dessas vagas. Eu disse naturalmente, porque esse sentimento não é opcional. Todas as outras pessoas sempre nos serviram como referências. Precisamos dos outros para ter pelo menos uma noção de nós mesmos. Como saberia que sou o último – que há inúmeras possibilidades à minha disposição, que não estou tirando de mim tudo quanto poderia, que tenho poucos merecimentos e muitos motivos para não reclamar – se não estivessem todos os outros na minha frente?
     Precisamos nos preparar também para as grandes vitórias. Não podemos nos encontrar entre os melhores e por isso nos premiar com a desobrigação de respeitar os demais. Alguns são vencedores porque há perdedores; alguns não precisam limpar o chão porque outros o fazem; alguns sofrem dias miseráveis para nos servir como exemplos de tudo que não devemos fazer. Só não haverá miseráveis no mundo quando os abastados não tiverem mais nenhuma chance de se tornarem miseráveis. No lado avesso dessa ideia está escrito assim: quando não houver mais nenhum egoísta (individualista sem ética) entre os abastados não haverá mais miseráveis no mundo. Ou seja: apanhou e não aprendeu? Vai apanhar de novo.
     Alguns vencedores, no entanto, não conseguem conter a bolha da vaidade e deixam inflar hiperbolicamente sua autoestima. Resultado: estresse de civilização mais exacerbação da autoestima é igual a desrespeito e violência. Junta-se a fome com a vontade de comer. A necessidade com o prazer. A necessidade de eliminar o estresse e o prazer da realização das perspectivas do empoderamento.
     O trote é um exercício de poder. E primitivo. Porque um poder em portadores modernos não deve ser útil contra os outros, serve apenas para qualificar a vida dos seus portadores. Mas os veteranos querem o primitivismo. Querem se sentir alheios aos rigores (ética, moral, lei) do processo de civilização. Querem se vingar das regras que os desafiaram. Eles venceram. Querem o prêmio. O poder.
     O materialismo moderno sobrepõe a técnica à moral. O antropocentrismo pós-medieval vem crescendo e se aperfeiçoando linearmente nos últimos oito séculos. Temos abandonado o ideal de uma vida celestial por um paraíso na terra. Dinheiro, sexo e poder nos atraem bem mais que anjinhos de branco tocando arpa entre as nuvens. O sujeito está com noventa anos e não quer morrer. Está se cuidando: caminhando, selecionando alimentos, comprou um mensurador da pressão arterial. A notícia ruim é que pra viver muito e bem multidões estão apelando pelos mais diversos meios ilícitos. E nós reverenciamos a esperteza, o oportunismo e o apadrinhamento. O indivíduo pode ser analfabeto e corrupto, mas basta enriquecer para que nós o chamemos de doutor.
     O antropocentrismo conseguiu um knock-down na moral. Não disse knockout porque a novela ainda não acabou, mas a moral está perdendo feio. Se o cidadão é médico ou outra coisa que o valha, basta. Importante é dinheiro, poder e sexo. Vai exigir mais dos meninos? Como se todo o resto fosse supérfluo. Indulgência para os vencedores. Eles têm autorização para humilhar, castigar, torturar e estuprar.
     O que acontece nas festas da faculdade de medicina da USP reflete reciprocamente toda a sociedade. O prazer a qualquer custo e a impunidade são caracteres comuns às culturas incipientes. O povo brasileiro ainda não existe. Somos imigrantes ou descendentes de forasteiros. E, se o povo brasileiro ainda não existe, se ainda não nos misturamos genética e culturalmente o bastante para conquistar nossos próprios caracteres, isso aqui é terra de ninguém. É a “casa da mãe Joana”. Quem vai conseguir documentar em juízo um estupro executado em território da USP?
     O ideal de uma faculdade de medicina exemplar dificulta a aceitação da denúncia. O corporativismo agrava a dificuldade. Mantenedores, reitores, diretores, coordenadores, professores, funcionários, estudantes, quem quer macular a imagem da USP? Quem está interessado em provar que os médicos formados pela USP não são as pessoas intocáveis que sempre imaginamos; exemplos de dedicação e superação humana; recordistas intelectuais e símbolos do aperfeiçoamento da espécie?
     A USP é um dos orgulhos nacionais. Figura entre as melhores universidades do mundo. Mas isso não é o fim. Podemos fazer ainda bem mais por ela. Podemos nos empenhar para que os nossos ideais não sejam apenas ilusões. Aperfeiçoar os sistemas de denúncias, punir os criminosos e coibir as circunstâncias propícias aos crimes, são medidas urgentes. Por que festas e bebidas alcoólicas dentro da cidade universitária? Façam festas em repúblicas, casas, apartamentos, clubes. Escola é lugar de estudos.