A Grande Família

Um dia de crise

NENÊ – Lineu, o café está pronto, está na mesa.
AUGUSTINHO – A senhora me chamou, Dona Nenê?
NENÊ – Não, Augustinho! Bom dia!
AUGUSTINHO – Bom dia! (Sentando-se à mesa.)
NENÊ – Estava chamando o Lineu. (Nenê procura a margarina, não vê que o Augustinho já está se servindo.) – Toma café, Augustinho.
AUGUSTINHO – Obrigado, Dona Nenê. A senhora é muito gentil.
NENÊ – Duas razões para pensar o que eu estou pensando: aparece na minha casa cedo e com fome. Aprontou mais uma, Augustinho?
BEBEL – (Entrando na casa.) – Aprontou, mamãe. Eu dei o dinheiro pra esse desconsertado pagar a prestação do meu celular, em vez de pagar, ele pegou o dinheiro e deu de entrada noutro. Pra ele.
AUGUSTINHO – Eu posso explicar, Dona Nenê?
NENÊ – Depois, Augustinho. Depois. Eu vou chamar o Lineu, que já está ficando atrasado. (Lineu está deitado, na cama, olhando para o teto. Nenê se surpreende com a cena.) – Lineu?
LINEU – Eu estou vivo, Nenê.
NENÊ – (Assustada.) – É?
LINEU – Estou, Nenê.
NENÊ – Você consegue falar o seu nome inteiro? Eu vi isso num filme. Funciona.
LINEU – Lineu Aparecido Mendes de Souza.
NENÊ – Hoje é feriado?
LINEU – Não.
NENÊ – (Nenê abre a janela para ver a rua.) – Que dia é hoje?
LINEU – Nem sábado nem domingo.
NENÊ – Lineu, meu amor, eu não tenho estrutura pra esse tipo de brincadeira. Eu estou ficando apavorada. Se você não me disser imediatamente o que está acontecendo com você ou comigo, eu vou começar a chorar e não sei quando eu vou parar.
LINEU – Eu simplesmente estou em crise, Nenê.
NENÊ – (Nenê grita como se tivesse sido atacada por uma barata voadora.) – Crise? O que é isso?
BEBEL – (Augustinho e Bebel entram no quarto.) – O que aconteceu?
LINEU – Estou vivendo um momento crítico. Talvez eu tenha agido nesses últimos anos como se estivesse noutro mundo. Definitivamente, eu estou em crise.
AUGUSTINHO – Demorou!
BEBEL – Tinho!
LINEU – Você acha isso mesmo, Augustinho?
AUGUSTINHO – Eu e todos os comerciantes fixos e ambulantes do Rio de Janeiro.
LINEU – Eu não disse, Nenê?
NENÊ – Augustinho, você não está colaborando. Você não quer esperar lá fora?
AUGUSTINHO – Não.
NENÊ – Augustinho!
AUGUSTINHO – Não. O Lineu pode ter uma recaída, querer recuar... O Lineu não pode desistir dessa crise.
BEBEL – Augustinho Carrara!
LINEU – Bebel, o Augustinho tem razão. Eu não posso desistir dessa crise. Qualquer homem que se tenha sério um dia tem de rever seus conceitos. As coisas todas têm mudado muito rapidamente. Não podemos continuar com as mesmas ideias a vida inteira. Temos que nos transformar com o mundo.
AUGUSTINHO – Lineu, você é um gênio. Nunca ouvi uma coisa assim desse jeito com essas palavras, rapaz! Essa coisa de velocidade do mundo... Lineu, você não é rápido.
LINEU – Você está dizendo que nunca fui rápido ou que os velhos são lentos e eu estou ficando velho.
AUGUSTINHO – Eu vou ser claro, Lineu. Você já é quase um dinossauro. Um pescoçudo, entende? Aquela coisa imensa que já não cabia mais no mundo porque precisava de muito espaço e muita comida. Anotou aí, Bebel?
BEBEL – Anotou o que, Tinho?
AUGUSTINHO – O que eu disse. Eu estou filosofando, rapaz! Isso tinha que estar sendo gravado. Vou buscar uma cadeira.
NENÊ – Não acredito nisto.
BEBEL – Papai, o que está acontecendo?
LINEU – Isso é normal, é natural, minha filha. Estou em crise. Tenho que repensar o meu jeito de ser. O mundo mudou e eu preciso mudar também. Não é lógico?
BEBEL – É, papai, é que o senhor nunca mudou. Nem de endereço.
AUGUSTINHO – (Volta com uma cadeira, vestindo bermuda listrada, sandálias de couro, óculos de aro fino) – Bebel, tudo muda. Até bermuda. Hahaha! – (Segurando as barras da bermuda, sentando-se, cruzando as pernas.)
BEBEL – Que óculos são esses, Augustinho?
AUGUSTINHO – De intelectual, Bebel! Eu estou me encontrando...
BEBEL – Você está se encontrando, Augustinho? Então, até hoje você estava brincando de esconde-esconde e não me avisou?
AUGUSTINHO – Não é isso, Bebel! Eu sempre senti que tinha mais alguma coisa aqui dentro de mim...
(Lineu e Agostinho se olham em silêncio, desconfiados.)
NENÊ – (Não acreditando.) – Os dois estão em crise?
AUGUSTINHO – Exatamente, Dona Nenê. O Lineu está passando por uma crise... cultural. Ele não tem mais certeza de que o seu jeito de ser é o jeito de ser que devia ser. (Faz um gesto tipo fui claro?) – Já a minha crise é solidária. Ela só existe para não deixar o Lineu sozinho num momento difícil.
BEBEL – Você também não vai trabalhar?
AUGUSTINHO – Bebel, todo homem, antes de ser um trabalhador, é um homem.
BEBEL – Folgado. Depois toma vergonha na cara e se torna um trabalhador.
AUGUSTINHO – Bebel, você não está colaborando.
BEBEL – Nem pretendo colaborar com essa sua cara de pau. Quase oito e ninguém foi trabalhar.
NENÊ – Quer uma xícara de café, Lineu?
AUGUSTINHO – Café, não, Dona Nenê! Água! Quando a gente está filosofando, a gente toma água. Daquelas garrafinhas de água mineral, entende?
NENÊ – Não, Augustino. Eu não entendo.
AUGUSTINHO – Água mineral, Dona Nenê. Garrafinha azul.
NENÊ – A água, eu entendo, Augustinho. (Sai do quarto.)
(Nenê encontra Tuco, na copa, inclinado com as mãos na mesa, a cabeça baixa. Nenê vê e dá outro grito, apavorada. Tuco se assusta.)
TUCO – Que isso, mãe?
NENÊ – Você está bem, meu filho?
TUCO – Estou, mãe. Claro que estou bem.
NENÊ – Você não está em crise, Tuco?
TUCO – Não estou em quê?
NENÊ – Em crise, meu filho. Você não está em crise?
TUCO – Não, mãe. Eu estou bem.
NENÊ – Graças a Deus, meu filho! A crise é uma coisa muito triste.
TUCO – É, mãe?
NENÊ – É, Tuco. Seu pai nem foi trabalhar.
TUCO – (Assustado, quase gritando.) – O quê?
NENÊ – (Pegando uma bandeja com café e xícaras) – Eu não disse? É uma coisa muito estranha. (Nenê leva o café para o quarto. Tuco a segue.)
LINEU - Houve um tempo em que eu me sentia atualizado. Dominava todas as máquinas pessoais do mercado. Eu sabia o nome de todas as ruas, o número de todas as leis, quando ia chover, o que as mulheres queriam ouvir. Hoje eu me sinto abandonado no passado. Entro no meu carro para o trabalho como se montasse num cavalo para lutar contra os inimigos do rei.
AUGUSTINHO – (Entre pensativo e concordante.) – Você envelheceu, Lineu!
TUCO – O que está fazendo aqui, Augustinho?
AUGUSTINHO – Vivendo uma crise solidária. Seu pai precisa de ajuda.
TUCO – Da sua ajuda? Que palhaçada é essa, Popozão?
LINEU – Não tem palhaçada nenhuma, meu filho. O Augustinho está meu ajudando, sim. Qualquer um pode me ajudar. Qualquer pessoa que leve a sério a minha reflexão.
NENÊ – Toma um café, Lineu.
LINEU – Obrigado, Nenê!
TUCO – (Percebe a presença da Bebel.) – Bebel!?
BEBEL – Se o Lineu para, quem se mexe? Percebeu que não está ventando?
TUCO – Popozão, você não tem o direito de vacilar. Todo mundo aqui aposta porque tem você pra garantir o chão.
BEBEL – Isso é verdade, papai. Se o senhor não fosse tão certinho, nós não seríamos tão erradinhos.
LINEU – Entendi. O meu comportamento exemplar é uma licença para que vocês sejam irresponsáveis.
AUGUSTINO – Descuidados, Lineu. Irresponsáveis é uma palavra desagradável.
NENÊ – Lineu, meu amor, o que você pretende fazer? Eu ainda estou apavorada. Eu não estou entendendo nada. Quer mais café?
LINEU – Quero, Nenê. Café. Obrigado! – (Nenê serve também o Augustinho.)
TUCO – Popozão, vocês não vão passar o dia tomando café... Procuro um psicólogo, um psiquiatra... O que você quer, Popozão?
LINEU – Tuco, meu filho, eu não quero nada. Parei um dia para pensar a minha vida, apenas isso.
BEBEL – Como isso aconteceu? De onde o senhor tirou essa ideia?
AUGUSTINHO – É, Lineu. Quem está influenciando você? Marx, Lacan, Freud...
NENÊ – Tem alguém por trás disso tudo?
AUGUSTINHO – Tem, Dona Nenê. Tem.
NENÊ – Quem, Lineu?
AUGUSTINHO – Uma amante!
BEBEL – Augustinho...
AUGUSTINHO – Uma mulher!
NENÊ – Meu Deus! – (Começa a chorar.)
TUCO – A minha mãe, Augustinho!
AUGUSTINHO – A sua mãe, não. Uma mulher nova. – (Nenê chora mais alto.)
BEBEL – Para com isso, Augustinho!
AUGUSTINHO – Ele mesmo falou que está se sentindo velho, ultrapassado, é isso, uma mulher mais nova, uma garota.
TUCO – Augustinho, eu vou te dar na cara!
AUGUSTINHO – Só uma mulher e mais nova que a Dona Nenê pode fazer isso com o Lineu. O homem está acabado.
BEBEL – Cala a boca, Augustinho!
AUGUSTINHO – O Lineu está apaixonado. Está tentando recomeçar a vida. É isso. Fala aí, Lineu!
BEBEL – Mamãe! – (Nenê perde os sentidos, mas não cai.)
AUGUSTINHO – Desmaiou, mas ficou em pé. Isso é que é mulher, Lineu. Não aquela vadiazinha que está fazendo você perder o juízo. – (Tuco e Bebel seguram a mãe pelos braços.)
LINEU – Ontem eu fui indicado pelos meus colegas para receber o prêmio Funcionário do Ano. – (Silêncio absoluto. Nenê abre os olhos.)
TUCO – Isso não era tudo que você queria?
LINEU – Era, Tuco. Era. Não é mais.
BEBEL – Por que, papai?
LINEU – Porque o Funcionário do Ano tornou-se a Piada do Ano.
BEBEL – Por que, papai?
LINEU – Nos últimos anos, os escolhidos são funcionários puxa-sacos, corrompidos e burocraticamente corretos.
BEBEL – Por que, papai?
LINEU – Por que o quê?
BEBEL – Não sei... – (Não entendendo o próprio diálogo.)
LINEU – Porque eu sou burocraticamente correto, estão me confundindo com os puxa-sacos e os corrompidos.
NENÊ – Por que, Lineu?
LINEU – A indicação do meu nome faz parte de uma campanha contra a minha integridade.
NENÊ – Por que, Lineu?
LINEU – Estão tentando me desmoralizar.
NENÊ – Por que, Lineu?
LINEU – (Exasperado.) – Porque eu não sou puxa-saco nem participo dos esquemas de corrupção. Por quê? Porque eu tenho princípios. Por quê? Porque eu teria vergonha de mim se me desse bem de maneira desonesta. Por quê? Porque eu não posso construir meu sucesso com a desgraça dos outros. Por quê? Porque isso é baixo, desleal, mesquinho, repugnante, próprio de pessoas que não têm recursos para vencer honestamente. Porque um sujeito só está realmente bem quando os outros também estão bem. Por quê? Porque ninguém consegue se isolar do resto do mundo. – (Pausa.) – As sacanagens também têm suas consequências. – (Outra pausa.) – Não quero ficar devendo para uma mãe a vida de uma criança que morreu intoxicada por causa de um alimento vencido. Não quero ficar devendo nada para ninguém.
AUGUSTINHO – Lineu, obrigado! Você está se ferrando, mas está me dando a oportunidade de pensar a minha vida. Obrigado, porque você está se ferrando, Lineu. Dá um abraço aqui, meu irmão. Se quiser, pode chorar. Eu seguro.
TUCO – O que você pretende fazer, Popozão?
LINEU – Renascer.
NENÊ / BEBEL – Renascer?!
LINEU – Renascer. Aqui dentro de mim vai nascer um novo Lineu.
AUGUSTINHO – (Com alguma alegria) – Você vai aceitar propina, Lineu? Nós vamos fazer dinheiro?
LINEU – Não, Augustinho. Eu vou me atualizar. Estudar, usar as novas tecnologias, entender os novos comportamentos, pisar as praias que ainda não pisei, passar pelas ruas que ainda não conheço. A cidade cresceu e se transformou, mas dentro de mim ainda está pequena e romântica.
BEBEL – Papai, o senhor está me deixando emocionada. – (Chora e abraça o pai.)
MENDONÇA – (Entrando.) – Nem liguei, Lineuzinho! Nem liguei! Quando me disseram que você não estava na repartição, voltei para o carro e vim. Você está vivo, Lineuzinho! Isso é mesmo um milagre! – (Pega o telefone celular e digita uns números.) – O Lineu faltou ao serviço e não está no hospital. Não pensei que viveria tanto para ver isso acontecer. – (Fala com a secretária, na repartição, dando uma grande notícia.) – Alô! Marcelinha? O Lineuzinho está vivo! Está! Está vivo! Estou pegando nele. Põe um cartaz na minha porta: Lineuzinho não morreu! Isso. Põe. Um beijo esborrachado nesse seu bocão vermelho, Marcelinha! Desculpa, Dona Nenê! Não dá um susto desse na gente não, Lineuzinho! Como você está? O que aconteceu?
LINEU – Está acontecendo, Mendonça. Estou renascendo!
MENDONÇA – Renascendo, Lineuzinho? – (Incrédulo.)
TUCO – E pelo jeito ele quer renascer desempregado.
MENDONÇA – O que significa isso, Dona Nenê?
NENÊ – Eu ainda estou tentando muito demais entender, Mendonça.
MENDONÇA – A senhora também não está bem, não é Dona Nenê?
NENÊ – É, Seu Mendonça. Eu estou muito bem. – (Nenê diz que está muito bem balançando a cabeça negativamente)
MENDONÇA – Lineuzinho, pense e responda bem devagar. O seu plano de saúde está em dia? Cuidado com o que você vai responder. Tem criança na rua.
LINEU – Mendonça, eu estou ótimo! Eu simplesmente hoje não fui trabalhar.
BEBEL – Depois de vinte e cinco anos sem uma falta na repartição. Não faltou nem quando eu bebi gasolina pensando que era guaraná.
NENÊ – Nem quando ele passou sete dias com diarreia.
MENDONÇA – A diarreia. (Lembrando-se.) – Isolamos um sanitário exclusivo para o Lineu. Trinta e dois rolos de papel da melhor qualidade. Quando a coisa acabou, interditamos o banheiro. Três dias de limpeza. O dinheiro do cafezinho nós gastamos com máscaras. Isso é grave. Ele não tem noção. O pior é que ele não sabe que está doente. O Lineuzinho já gritou com alguém aqui hoje? Demonstrou algum tipo de violência?
NENÊ – Não, Mendonça. O Lineu está calmo demais.
MENDONÇA – Lineuzinho, o que eu posso fazer por você?
LINEU – Voltar para a repartição, registrar minha ausência e depois abonar minha falta.
MENDONÇA – Farei isso, Lineuzinho. Depois. Eu não posso deixar você aqui nesse estado.
LINEU – Entendi. Está todo mundo aqui me usando como desculpa pra vagabundear.
AUGUSTINHO – Lineu, você não tem ideia da importância que você tem pra nós.
BEIÇOLA – Gente, o que está acontecendo? Abri a pastelaria, vi uma coisa que eu nunca vi nessa hora, o carro do Lineu na garagem, vim ver o que está acontecendo.
NENÊ – O Lineu está em crise, Beiçola. Mas é coisa rápida, não é Lineu?
AUGUSTINHO – Crise curta é melhor não ter. Desorganiza tudo e não resolve nada.
TUCO – Desde quando você entende de crise, Augustinho?
BEIÇOLA – De crise financeira ele entende desde quando nasceu.
AUGUSTINHO – Beiçola, isso aqui não é o seu buteco pra você vir com suas baixarias. O nível da conversa aqui é outro. Se você não tem leitura para uma discussão agradável, cai fora.
TUCO – Você já leu algum livro, Augustinho.
AUGUSTINHO – Já. Li duas páginas do Pequeno Príncipe. A primeira e a última. A professora só queria saber como é que começava e como é que acabava a história.