Capitães da Areia

Jorge Amado

trechos

         Jorge Amado publicou “Capitães da Areia” quando tinha 25 anos. Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado, disse que, para conhecer os capitães da areia, o escritor dormiu algumas noites com os meninos no trapiche. Esses dados nos permitem deduzir que os capitães da areia “viveram” em Salvador nos primeiros anos da década de 30 do século 20.

Abaixo, TRECHOS fundamentais da obra, por capítulo.


O TRAPICHE.
 
         É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos. Hoje tem quinze anos.
 
         Pedro Bala era muito mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto da vida.
 
         Uma noite, quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois num navio.
 
 
NOITES DOS CAPITÃES DA AREIA.
 
         Passa um vento frio que levanta a areia e torna difíceis os passos do negro João Grande, que se recolhe. Vai curvado pelo vento como a vela de um barco. E alto, o mais alto do bando, e o mais forte também, negro de carapinha baixa e músculos retesados, embora tenha apenas treze anos, dos quais quatro passados na mais absoluta liberdade, correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia.
 
         ...doía-lhe a cabeça se tinha que pensar.
 
         O Querido-de-Deus é o mais célebre capoeirista da cidade.
 
         João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem.
 
         Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães da Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope.
 
         João Grande distinguia bem a voz do Sem-Pernas, estrídula e fanhosa. O Sem-Pernas falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe também a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e tristonho, na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite.
 
         Pirulito era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha.
 
         Nunca tivera família [o Sem-Pernas]. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u'a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto.
 
         E o Gato andava de um lado para outro inutilmente. Foi quando viu Dalva, que vinha pela rua embuçada num capote de peles apesar da noite de verão.
 
         Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vê-la. Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se pôr elegante. Tinha o dom da elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente.
 
         ...se um dia o flautista não viesse... Se o flautista morresse...
 
         – Então eu quero, filhinho, que tu vá na rua Rui Barbosa. O número é 35. Procura seu Gastão. É no primeiro andar. Diz a ele que estou esperando.
 
         – Olha, bichinha, ele tá grudado com outra, sabe? Também eu disse as boas aos dois. E depois pelei a bruaca – meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro. – Vamos rachar isso.
 
         Desta vez ela sentou, ele a pegou e a derrubou na cama. Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu, murmurou:
         – O frangote parece um homem...
 
         Por isso o Gato sai toda meia-noite e não dorme no trapiche. Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia.
 
         Logo o reconheceu: era Almiro, um do grupo, de doze anos, gordo e preguiçoso. Deitaram-se juntos, o negro acariciando Almiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho. O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais.
 
         Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou.

 
PONTO DAS PITANGUEIRAS.
 
         João Grande apareceu logo. Pedro falou em voz muito baixa: – Olha, Grande, o tal empregado tá sentado em riba do embrulho. Tu vai chegar na porta da rua, apertar a campainha e sumir depois. É pro homem se levantar e eu abafar o embrulho. Mas dá o suíte logo pro homem não te ver, pensar que foi sonho. Deixa passar o tempo de eu chegar na cozinha.
         Voltou rápido para a porta da cozinha. Daí a um minuto a campainha soou. O empregado levantou-se às pressas, abotoou o paletó e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor, onde acendeu uma luz. Pedro Bala penetrou na copa, trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara. Saltou o muro, assoviou para o Gato e João Grande. O Gato veio logo. Mas João Grande não apareceu. – Vamos entrar de novo...
         Mas ouviram o assovio de João Grande, que não tardou a estar ao lado deles.
         Pedro perguntou: – Onde tu te meteu?
         – Na hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima ficou muito assustada. Pegou, abriu a janela, parecia que ia se atirar mesmo. Espiava que fazia medo. Tava mesmo chorando. Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais, que não tinha mais de quê. Que a gente tinha abafado os papéis. E como tive que explicar tudo a ela, tive que demorar...

 
AS LUZES DO CARROSSEL.
 
         Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música.
 
         Só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza.
 
         O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo. A amizade veio por intermédio do Boa-Vida.
 
         – Por que faz isso, meu filho? – perguntou com um sorriso enquanto tirava da mão do Boa-Vida o relicário de ouro.
 
         Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações com as crianças abandonadas da cidade.
 
         O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero. Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padres da Bahia. Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos, antes de entrar para o seminário. O diretor da fábrica, num dia em que o bispo a visitara, resolveu dar mostra de generosidade e disse que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação sacerdotal, ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de alguém que quisesse estudar para padre. José Pedro, que estava no seu tear, ouvindo, se aproximou e disse que ele queria ser padre.
 
         Sofreu muito, principalmente depois que, passados dois anos, o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar.
 
         Mas a viúva Margarida Santos assestou [apontou] novamente o lorgnon [binóculo usado em teatro] de ouro.
         – O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha...
         – São crianças, senhora.
         A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca. O padre continuou: – Cristo disse: Deixai vir a mim as criancinhas...
         – Criancinhas... Criancinhas... – cuspiu a velha.
         – Ai de quem faça mal a uma criança, falou o Senhor – e o padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha.
         – Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões. Isso não são crianças. São capazes até de ser dos Capitães da Areia... Ladrões – repetiu com nojo.

 
DOCAS
 
         João de Adão continuou: – No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas. A gente tem um lugar guardado pra tu.
         – Por quê? – perguntou Boa-Vida, já que Pedro apenas olhava espantado.
         – Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente, pelo direito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez destes que a gente encontra por aí.
         – Meu pai? – fez Pedro Bala, que daquelas histórias só conhecia vagos rumores.
         – Teu pai, era. A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da greve fazia discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado por uma bala. Mas tem um lugar pra tu nas docas.
         Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto. Olhou João de Adão:
         – Por que tu nunca me contou isso?
         – Tu era pequeno para entender. Agora tu tá ficando um homem – e riu com satisfação.
         Pedro Bala riu também. Estava contente de saber a história de seu pai, porque ele tinha sido um homem valente. Mas perguntou lentamente:
         – E minha mãe tu conheceu?
 
         – Eu conheci – era a negra que estava falando. – Um pedaço de mulher. Corria uma história que teu pai tinha furtado ela de casa, ela era de uma família rica lá de cima – e apontava a cidade alta. Morreu quando tu nem tinha seis meses.


AVENTURA DE OGUM
 
         – Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus – sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe-de-santo Don'Aninha. – Não se contentam de matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres... – e alçava os punhos.
         Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado.
 
         – Ponha esse moleque em liberdade.
         Pedro pediu para ir buscar seu paletó. Acomodou debaixo do braço, nem parecia trazer a imagem envolvida nele. Atravessaram o corredor novamente, o guarda o deixou na porta. Pedro tomou para o largo dos Aflitos, rodeou o velho quartel, desabou pela Gamboa de Cima.

 
DEUS SORRI COMO UM NEGRINHO
 
         ...o padre José Pedro prometera tudo fazer para lhe conseguir [para o Pirulito] um lugar no seminário.
 
         Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom (mas não tão justo também...) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
 
         Depois veio aquela revelação de Deus justiça (para Pirulito ficou Deus-vingança) e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus.
 
         E com certeza foi ela, sim, foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:
         – Leve e cuide dele... Cuide bem...
Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.

 
FAMÍLIA
 
         – Meu filho também se chamava Augusto... Morreu quando tinha assim o seu tamanho... Mas entre, meu filho, vá se lavar para comer.
 
         E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não sabe mesmo por que, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que é um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá 1evar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no seu coração. Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver.
 
         No outro dia, à noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto. Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explicações.

 
MANHÃ COMO UM QUADRO
 
         O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão:
         – Você sabe ler?
         – A gente sabe, sim senhor – respondeu Professor.
         – Aí está meu endereço. Eu quero que você me procure. Talvez possa fazer alguma coisa por você.
         Professor tomou o cartão. O guarda se encaminhava para eles. Pedro Bala se despediu:
– Até logo, doutor.
         O homem ia puxando a carteira de níqueis, mas viu o olhar do Professor na sua piteira. Jogou o cigarro fora, entregou a piteira ao menino.
         – Isso é pelo meu retrato. Vá a minha casa...

 
ALASTRIM
 
         Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.
 
         Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim.
 
         Pirulito rezava, pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade, não fosse suprema justiça.
 
         Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos.
 
         – Que culpa eles têm? – o padre se lembrava de João de Adão. – Quem cuida deles? Quem os ensina? Quem os ajuda? Que carinho eles têm? – estava exaltado e o Cônego se afastou mais dele, enquanto o fitava com os olhinhos duros. – Roubam para comer porque todos estes ricos que têm para botar fora, para dar para as igrejas, não se lembram que existem crianças com fome... Que culpa...
         – Cale-se – a voz do Cônego era cheia de autoridade. – Quem o visse falar diria que é um comunista que está falando. E não é difícil. No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles... O senhor é um comunista, um inimigo da Igreja...
         O padre o olhou horrorizado. O Cônego levantou-se, estendeu a mão para o padre:
         – Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais que leva. Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá (agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia de resolução, uma doçura que não admitia réplicas), penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas ideias comunistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. O senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo? Lembre-se que a sua inteligência é muito pequena, o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus...
 
         Até Almiro, por cuja causa se armara tão grande barulho no trapiche, fora para o lazareto. E não voltara... Era um menino bonito. Havia quem dissesse que ele e Barandão... Mas não era ruim, não aborrecia ninguém.
 
         E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de Juazeiro. A bexiga foi com ele.
         Boa-Vida voltou magro, a roupa dançando no seu corpo. A cara agora estava toda picada. Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite ele entrou no trapiche. Mas Professor andou logo para ele:
         – Ficou bom, mulato?
         Boa-Vida sorriu. Vinham apertar a mão dele, Pedro Bala lhe deu um abraço:
         – Mulato bom. Mulato batuta.

 
FILHA DE BEXIGUENTO
 
         Dora estava triste e pensava em voltar ao morro. Ia ser uma carga para os vizinhos pobres. Não queria voltar. Do morro sua mãe tinha saído num caixão, seu pai metido num saco.
 
         Pedro Bala disse baixinho: – É uma menina...
         Pulou para o lado de João Grande e de Professor.
         – Tu é um negro bom. Tu tá com o direito... – Voltou-se para os outros. – Quem quiser vir, venha...
         – Tu não pode fazer isso, Bala... – e Boa-Vida passava a mão no talho. – Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor...
         – Juro que não quero comer ela, nem eles quer. É uma menina. Mas ninguém toca nela. Quem quiser que venha...
         Os menores e mais medrosos foram se afastando. Boa-Vida se levantou, foi para seu canto, limpando o sangue. Volta Seca falou para Pedro Bala devagar: – Eu não vou não é de medo. É que tu disse que é uma menina.
         Pedro Bala se aproximou de Dora: – Tem medo, não. Ninguém toca em você.

 
DORA, MÃE
 
         A mãe do Gato morrera cedo. Era uma mulher frágil e bonita. Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de operário não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato. A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pequenino de novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta.
 
         Volta Seca espichou o jornal para Professor. Dora olhou o mulato, ele sorriu meio confuso:
         – É que traz notícias de Lampião... – seu rosto sombrio clareava. – Tu sabe que Lampião é meu padrim?
         – Padrinho?
         – Pois é... Foi minha mãe que tomou, porque Lampião é um macho de verdade, não respeita cara... Minha mãe era uma mulher valente, uma mulher capaz de aguentar um fuzil. Um dia fez correr dois soldados que se fizeram de besta. Era um mulherão... Valia um homem.
 
 
REFORMATÓRIO
 
         Ontem, às últimas horas da tarde, cinco meninos e uma menina penetraram no palacete do dr. Alcebíades Menezes, na ladeira de São Bento. Foram porém pressentidos pelo filho do dono da casa, estudante de medicina, que deixou que eles penetrassem num quarto, onde os trancou. Chamou então os guardas e investigadores, a quem os entregou.
 
         Virou as costas. O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara. Rolou no chão, xingando.
         – Ainda não vai dizer? – perguntou o diretor do reformatório. – Isso é só o começo.
         – Não – foi tudo o que Pedro Bala disse.
         Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos, pontapés. O diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João Grande, Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segurança de todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, não podia trair. Lembrou-se da cena da tarde. Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar preso também. O orgulho encheu seu peito. Não falaria, fugiria do reformatório, libertaria Dora. E se vingaria... Se vingaria...
         Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios. Vai se fazendo noite para ele. Agora já não sente dores, já não sente nada. No entanto, os soldados ainda o surram, o investigador o soqueia. Mas ele não sente mais nada.
         – Desmaiou – diz o investigador.
         – Deixe ele por minha conta – explica o diretor do reformatório. – Eu levo ele pro reformatório, lá ele abre a boca. Garanto.
 
         Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda. Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homem-cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o impediam. Seus membros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas.
 
         Abrem a porta. Pedro Bala se atira para a frente, pensando que o vão soltar. Uma mão o empurra:
         – Ei, calma...
         Vê o bedel Ranulfo na porta. Traz um caneco com água, que Pedro Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles. Mas é tão pouca... Não chega para matar a sede. O bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde boiam alguns caroços de feijão. Pedro Bala pede:
         – Pode me dar um pouco mais de água?
         – Amanhã... – ri o bedel.
         – Só um pouco mais.
         – Amanhã tem mais. E se você continuar a bater na porta e gritar em vez de 8 passa 15 dias – empurra a porta na cara de Pedro Bala.
         Ouve a chave que o tranca. Tateia na escuridão até encontrar o prato. Bebe a água escura do feijão. Nem repara que é salgadíssima. Depois come os grãos duros. Mas a sede o ataca novamente. O feijão muito salgado ativa a sede. O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa? Deita. Já não pensa em nada.
 
         Quantas horas? Quantos dias? A escuridão é sempre a mesma, a sede é sempre igual. Já lhe trouxeram água e feijão três vezes. Aprendeu a não beber caldo de feijão, que aumenta a sede. Agora está muito mais fraco, um desânimo no corpo todo. O barril onde defeca exala um cheiro horrível. Não o retiraram ainda. E sua barriga dói, sofre horrores para defecar. É como se as tripas fossem sair. As pernas não o ajudam. O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração.
 
         No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. Com certeza a puseram durante a noite. É um rolo de corda fina e resistente. Está novinha. No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças.
 
         Põe o punhal ao alcance da mão. Recolhe completamente a corda, amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o Querido-de-Deus lhe ensinou. Ameaça mais uma vez o menino, joga a corda, passa o corpo pela janela, começa a descida. Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator. Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prende o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade.

 
ORFANATO
 
         Era sempre crepúsculo na enfermaria. Era como uma antessala do túmulo, com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar. O médico que a vira balançara a cabeça com tristeza.
         Mas a luz entrou com eles. Como Pedro Bala estava magro, pensou Dora ao se pôr ao seu lado. João Grande, Gato, Professor, estavam com ele. Professor mostrou a navalha à Irmã, que abafou um grito. A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis. Dora queimava de febre, mal podia estar de pé. A Irmã murmurou: – Ela está muito doente...
         Dora respondeu: – Eu vou, Pedro.

 
DORA, ESPOSA
 
         Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão dele, leva ao seu peito. Arde de febre. A mão de Pedro está sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
         – Tu sabe que já sou moça?
         A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela:
         – Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
         Ele a olha espantado: – Não, que tu tá doente...
         – Antes de eu morrer. Vem...
         – Tu não vai morrer.
         – Se tu vier, não.
         Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
         – Tu é minha agora – fala ele com voz agitada.
         Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem. Dora murmura: – É bom... Sou tua mulher.
         Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
         – Agora vou dormir – diz.
 
         Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os meninos.
 
         Querido-de-Deus sabe o que esperam dele. Que leve o cadáver no seu saveiro e o jogue no mar, adiante do forte velho. Como poderá sair um enterro do trapiche? É difícil explicar tudo isso ao padre José Pedro. O Sem-Pernas o faz numa voz apressada. O padre a princípio se horroriza. É um pecado, ele não pode consentir num pecado. Mas consente, que não vai denunciar onde moram os Capitães da Areia. Pedro Bala não fala.

 
VOCAÇÕES
 
         – Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da piteira, escreveu a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dizer que me mandasse... Um dia vou mostrar como é a vida da gente... Faço o retrato de todo mundo... Tu falou uma vez, lembra? Pois faço...
         A voz de Pedro Bala o animou: – Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente...
         – Como? – fez João Grande.
         Professor também não entendeu. Tampouco Pedro Bala sabia explicar. Mas tinha confiança no Professor, nos quadros que ele faria na marca do ódio que ele levava no coração, na marca de amor à justiça e à liberdade que ele levava dentro de si. Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia.
 
         Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país.
 
         Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar para viver. Pedro Bala consentira que ele continuasse no trapiche, apesar de que ele não levava a mesma vida que os outros.
 
         Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado.
 
         Mas desta vez o Cônego não ralha. Anuncia que o arcebispado resolveu lhe dar uma paróquia.
 
         A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros, numa perdida vila do alto sertão. Mas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José Pedro. Ia para o meio dos cangaceiros. E os cangaceiros são como crianças grandes.
 
         – Ia falar disso mesmo disse o padre. – Nunca vi uma vocação tão decidida.
         O missionário sorriu:
         – Porque nós estamos em falta de um irmão. Não é o mesmo que ser padre, bem sei. Mas está muito próximo. E se a sua vocação é verdadeira a ordem pode fazê-lo estudar e mesmo se ordenar.
         – Ele vai ficar louco de alegria.
         – O senhor responde por ele?
         Pirulito irá ser frade. Um dia talvez se ordene. O padre sai agradecendo a Deus.
 
         Boa-Vida vai se afastando aos poucos, à proporção que vai crescendo. Quando tiver dezenove anos já não voltará. Será um malandro completo, um daqueles mulatos que amam a Bahia acima de tudo, que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das festas, da música, do corpo das cabrochas. Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista, ladrão quando se fizer preciso. De bom coração, como canta um ABC que Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o trabalho, sendo malandro sempre. Um dos valentões da cidade. Figura que os futuros Capitães da Areia amarão e admirarão, como Boa-Vida amou e admirou o Querido-de-Deus.

 
NA RABADA DE UM TREM
 
         Só a caatinga é que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsou os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração, assassino, desonrador, ladrão. Mas para Volta Seca, para os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia.
 
         Um coronel gordo sai do vagão, fala: – Capitão Virgulino...
         O cangaceiro de óculos aponta o fuzil: – Para dentro.
         Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria. Encontrou seu padrinho, Virgulino Ferreira Lampião, herói das crianças sertanejas. Chega para junto dele, um outro cangaceiro o quer afastar, mas ele diz: – Meu padrim...
         – Quem é tu?
         – Sou Volta Seca, filho de tua comadre...
         Lampião o reconhece, sorri.
 
 
COMO UM TRAPEZISTA DE CIRCO
 
         Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente tinha odiado. E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas. Se o levarem, o homem rirá novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.
         A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio.
 
 
NOTÍCIAS DE JORNAL
 
         Um detalhe notaram todos que foram a esta estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor João José tem uma história...
 
         ...o júri condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 60 marcas.
 
 
COMPANHEIROS
 
         Os fura-greves vêm num grupo cerrado. Um americano o chefia com a cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. Da sombra, dos becos, ninguém sabe de onde, como demônios fugidos do inferno, surgem meninos esfarrapados e de armas na mão. Punhais, navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo dos fura-greves para. Logo os demônios se atiram, é um bolo só. São em número maior que o grupo de fura-greves. Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem pauladas, alguns já fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a ajuda de outro o soqueia. Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno.
 
 
OS ATABAQUES RESSOAM COMO CLARINS DE GUERRA
 
         Pedro Bala foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lloyd.
 
         Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes. Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também. E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país.
 
         Bala reúne a todos, bota Barandão junto de si:
         – Gentes, agora eu vou embora, vou deixar vocês. Vou embora, Barandão agora fica o chefe. Alberto vem sempre ver vocês, vocês devem fazer o que ele diz. E todo mundo ouça: Barandão agora é o chefe.
 
Jorge Amado (1912-2001)