A cidade e as serras

Eça de Queirós

questões

DESAFIO: Indique a alternativa incorreta.

       Jacinto, o protagonista do romance “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós, depois de abandonar a cidade de Paris, reforma as casas da fazenda, instala telefones, inaugura escolas e oferece participação nos lucros aos empregados. Essas atitudes de Jacinto
a) demonstram a tese (a cidade) e a antítese (as serras) do protagonista.
b) A última alternativa desta pergunta está correta.
c) A penúltima alternativa desta pergunta está incorreta.
d) refletem a difusão dos ideais socialistas do fim do século 19.
e) confirmam a síntese do protagonista: as serras com as tecnologias da cidade.

   Enfim uma tarde desabafou comigo, a um canto da varanda, enquanto Jacinto, na livraria, escrevia a um seu amigo de Holanda, o conde Rylant, mordomo-mor da Corte, pedindo desenhos, e planos, e orçamentos de uma queijeira perfeita.
   – Pois, sr. Fernandes, se toda esta grandeza vai por diante, sempre lhe digo que o sr. D. Jacinto enterra aqui na serra dezenas de contos... Dezenas de contos!
   E como eu aludia à fortuna do meu Príncipe, a quem todas essas obras tão vastas, que alterariam o antiquíssimo rosto da serra, não custavam mais que a outros o conserto de um socalco, o bom Silvério atirou os longos braços para as coxas gordas, ainda mais desolado:
   – Pois por isso mesmo, sr. Fernandes! Se o sr. D. Jacinto não tivesse a dinheirama, recuava. Assim, é zás, para diante; e eu não o censuro pela ideia. Lograsse eu a renda de Sua Excelência, que me atirava também a uma lavoura de capricho. Mas não aqui, sr. Fernandes, nestas serranias, entre alcantis. Pois um senhor que possui aquela linda propriedade de Montemor, nos campos do Mondego, onde até podia plantar jardins de desbancar os do Palácio de Cristal do Porto! E a Veleira? O sr. Fernandes não conhece a Veleira, lá para os lados de Penafiel? Isso é um condado! E uma terra chá, boa terra, toda junta, ali em volta da casa, com uma torre: um regalo, sr. Fernandes. Mas sobretudo Montemor! Lá é que eram prados e manadas de vacas inglesas, e queijeira e horta rica, de fartar, e aí trinta perus na capoeira...
   – Então que quer, Silvério? O Jacinto gosta da serra. E depois este é o solar da família, e aqui começaram no século XIV os Jacintos...
   O pobre Silvério, no seu desespero, esquecia o respeito devido à secular nobreza da casa.
   – Ora! Até ficam mal ao sr. Fernandes essas ideias, neste século da liberdade... Pois estamos lá em tempos de se falar em fidalguias, agora que por toda a parte anda tudo em República? Leia o «Século», sr. Fernandes!, leia o «Século», e verá! E depois eu sempre quero ver o sr. D. Jacinto, aqui no Inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela manhã, e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que atiram carvalheiras de raízes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a serra!... Olhe, até mesmo por amor da saúde o sr. D. Jacinto, que é fraquinho e acostumado à cidade, necessita sair da serra. Em Montemor, em Montemor é que Sua Excelência estava bem. E o sr. Fernandes, tão amigo dele e assim com tanta influência, devia teimar, e berrar, até que o levasse para Montemor.
   Mas, infelizmente para a quietação do Silvério, Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão, donde brotara a sua raça, e o antiquíssimo húmus refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava.
   E depois o que o prendia à serra era o ter nela encontrado o que na cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrara nunca, – dias tão cheios, tão deliciosamente ocupados, de um tão saboroso interesse, que sempre penetrava neles como numa festa ou numa glória.

(Trecho do nono capítulo de A Cidade e as Serras)
VOCABULÁRIO (Houaiss)
ALCANTIS: despenhadeiros; abismos.
CONDADO: terra dada em feudo pelo rei a um conde, para que este exercesse a jurisdição civil, política e militar.
SOCALCO: terreno elevado e mais ou menos plano, numa encosta.

1. No primeiro parágrafo do excerto, uma conjunção se repete caracterizando a figura de linguagem denominada
a) polissíndeto
b) catacrese
c) hipálage
d) metonímia
e) sinestesia
 
2. A figura de linguagem referenciada na questão anterior empresta ao trecho em que se encontra o efeito adverbial de
a) causa
b) intensidade
c) consequência
d) modo
e) finalidade
 
3. No trecho “o sr. D. Jacinto enterra aqui na serra dezenas de contos” temos uma figura de linguagem denominada
a) aliteração
b) apóstrofe
c) anáfora
d) metáfora
e) perífrase
 
4. A palavra “dinheirama”, que aparece no quarto parágrafo, é um neologismo – palavra nova formada a partir de outra já existente – formado por
a) prefixação
b) sufixação
c) parassíntese
d) justaposição
e) aglutinação
 
5. Uma figura de linguagem bastante comum nas obras líricas aparece no fim do oitavo parágrafo: “e o antiquíssimo húmus refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava”. Trata-se de qual figura?
a) ironia
b) assíndeto
c) anacoluto
d) hipérbole
e) silepse de pessoa
 
6. O trecho “e chuvas e chuvas que se desfaz a serra” aparece no sétimo parágrafo. Nele, a relação do verbo desfazer com o substantivo “chuvas” é
a) comparativa
b) concessiva
c) condicional
d) conformativa
e) consecutiva
 
7. No fim do sétimo parágrafo, no trecho “devia teimar, e berrar, até que o levasse para Montemor”, encontramos uma figura de linguagem denominada
a) gradação
b) eufemismo
c) sinédoque
d) pleonasmo
e) prosopopeia
 
8. Silvério, no sétimo parágrafo, diz “E depois eu sempre quero ver o sr. D. Jacinto, aqui no Inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela manhã, e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que atiram carvalheiras de raízes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a serra!...” Nesse trecho, o advérbio “sempre” traz a ideia de que
a) naquela região, os invernos são sempre rigorosos e desastrosos.
b) Silvério sempre quis ver Jacinto sofrendo nos invernos daquela região.
c) o procurador de Jacinto sempre o quis ver como um herói vencendo os invernos rigorosos e desastrosos daquela região.
d) Jacinto é forte e sempre resistirá aos rigores dos invernos daquela região.
e) apesar de não aprovar a permanência de Jacinto naquela região, Silvério estará sempre torcendo para que ele resista aos rigores e aos destemperos dos invernos.
 
9. Na frase “e a friagem a trespassar os ossos”, transcrita do sétimo parágrafo, o “a” de “a trespassar” é uma preposição que dá ao verbo “trespassar” o tempo
a) presente do gerúndio.
b) passado do gerúndio.
c) futuro do infinitivo.
d) passado do particípio.
e) presente do particípio.
 
10. O personagem Silvério, no quarto parágrafo, usa “Sua Excelência” em vez de Vossa Excelência porque a pessoa a quem ele se refere é
a) a segunda pessoa.
b) de menor importância.
c) o seu interlocutor.
d) uma terceira pessoa.
e) um nobre acima do seu interlocutor.
 
11. O narrador, quando diz “meu Príncipe”, refere-se a
a) D. Galeão
b) D. Miguel
c) Zé Fernandes
d) Silvério
e) Jacinto
 
12. Assinale a alternativa incorreta a respeito do romance A cidade e as serras, de Eça de Queirós.
a) Em  A cidade e as serras, Eça acredita na vida simples e rústica, libertando o bucolismo, valorizando os seres simples, a distância da civilização, a pureza da vida campestre na mais sincera contaminação romântica.
b) O romance é escrito em primeira pessoa por José Fernandes, um personagem secundário.
c) No romance A cidade e as serras, Queirós volta-se para a descrição das paisagens mais familiares que costumava ver na infância.
d) O narrador onisciente centraliza seu interesse na figura de certo Jacinto, descrevendo-o como um homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no 202 dos Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de Portugal, onde a família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem.
e) O primitivo de A cidade e as serras e o apego histórico de A Ilustre Casa de Ramires compõem os romances da última fase do escritor português.
 
13. Aponte a melhor justificativa para o título A cidade e as serras.
a) Comparando a cidade de Paris e as serras portuguesas, Jacinto, depois de algum tempo na península, opta pela civilização francesa.
b) Na simplicidade das serras contra o luxo da cidade, vencem as decepções e angústias do protagonista.
c) Apesar de ter nascido e vivido a sua juventude na cidade (Paris, França), é no campo (nas serras) que Jacinto encontra uma qualidade de vida satisfatória.
d) O romance concentra-se na amizade de Jacinto e José Fernandes; um vive na cidade, o outro nas serras.
e) Trata-se de uma metáfora: o romantismo da cidade confrontando-se com o realismo das serras.
 
     E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despregar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
     - Pois aqui tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
     O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase negro, de uma manga muito curta.
     - A mão!
     E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
     - Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
     Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com aponta do cajado no chão:
     - Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!
     Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
     - Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei D. Sebastião voltará?
     O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:
     - Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa... Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros...

(Trecho de "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós)

14. A única passagem que NÃO encontra apoio em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, é:
a) Em A Cidade e as Serras, José Fernandes, de rica família proveniente de Guiães, região serrana de Portugal, narra a história de Jacinto de Tormes, seu amigo também fidalgo, embora nascido e criado em Paris.
b) A Cidade e as Serras explora uma grave tese sociológica: ser-nos preferível viver e proliferar pacificamente nas aldeias a naufragar no estéril tumulto das cidades.
c) Para Jacinto, Portugal estava associado à infelicidade, enquanto Paris associava-se à felicidade; ao longo do romance, contudo, essa opinião se modifica.
d) No romance, dois ambientes distintos são enfocados ao longo das duas partes em que o livro pode ser dividido: a civilização e a natureza.
e) Já avançado em idade, Jacinto se aborrece com as serras e tenciona reviver as orgias parisienses, mas faltam-lhe, agora, saúde e riqueza.

15. O trecho acima, do romance A cidade e as serras, de Eça de Queirós, ilustra um mito que atravessa a história clássica dos portugueses. Qual?
a) As cruzadas
b) O sebastianismo
c) As navegações
d) O cristianismo
e) O classicismo
 
16. (PUC) O romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, publicado em 1901, é desenvolvimento de um conto chamado “Civilização”. Do romance como um todo pode afirmar-se que:
a) apresenta um narrador que se recorda de uma viagem que fizera havia algum tempo ao Oriente Médio, à Terra Santa, de onde deveria trazer uma relíquia para uma tia velha, beata e rica.
b) caracteriza uma narrativa em que se analisam os mecanismos do casamento e o comportamento da pequena burguesia da cidade de Lisboa.
c) apresenta uma personagem que detesta inicialmente a vida do campo, aderindo ao desenvolvimento tecnológico da cidade, mas ao final se integra à vida campesina e a transforma com a aplicação de seus conhecimentos técnicos e científicos.
d) revela narrativa cujo enredo envolve a vida devota da província e o celibato clerical e caracteriza a situação de decadência e alienação de Leiria, tomando-a como espelho da marginalização de todo o país com relação ao contexto europeu.
e) se desenvolve em duas linhas de ação: uma marcada por amores incestuosos; outra voltada para a análise da vida da alta burguesia lisboeta.

      Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio.
      Depois, muito gravemente:
      Tu dizes que na Natureza não há pensamento...
      Outra vez! Olha que maçada! Eu...
      Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes?
      Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos...

17. (FUVEST) Considerado no contexto de A Cidade e as Serras, o diálogo presente no excerto acima revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural:
a) indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social.
b) demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural.
c) guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza.
d) serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX.
e) veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances.
 
18. Assinale a alternativa INCORRETA a respeito da obra A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.
a) Eça de Queirós é o autor, mas não é o narrador.
b) O protagonista nasceu em Portugal.
c) O livro está escrito na primeira pessoa do singular.
d) A Cidade e as Serras é uma das obras da terceira fase de Eça de Queirós.
e) O romance expõe o passadismo de Eça de Queirós.
 
19. Destaque a afirmativa CORRETA: o romance realista A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós,
a) inaugura o realismo na ficção portuguesa. Narra a história de Amaro, sacerdote sem vocação, e Amélia, moça educada no ambiente provinciano de Leiria. Aqui Eça critica a hipocrisia moral, o relaxamento dos costumes, a religiosidade supersticiosa e a corrupção clerical.
b) focaliza a média burguesia lisboeta. A protagonista, Luísa, vítima do ócio e de uma educação desleixada, deixa-se levar pela fantasia romântica da época e trai Jorge, seu desinteressante marido, com Basílio, um conquistador medíocre. É deste romance a famosa figura do Conselheiro Acácio, protótipo da falsa cultura pomposa e vazia. É notável a influência de Madame Bovary, de Flaubert.
c) enfoca com ironia e sarcasmo a alta sociedade lisboeta, retratando nobres, milionários e políticos, todos ociosos e vazios. Contêm a história do amor incestuoso e trágico dos irmãos Carlos da Maia e Maria Eduarda.
d) apresenta as virtudes ancestrais de Portugal personificadas no fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, em meio à decadência em que está vivendo o país.
e) contrapõe o luxo e o progresso da cidade de Paris, onde vive Jacinto, um rico português, à simplicidade e rusticidade das serras de Portugal, para onde Jacinto se transfere, cansado de civilização, e onde redescobre o poder regenerador da vida no campo, em contato com a natureza em estado puro.
 
Texto para as questões 20 a 22.
 
       No entanto Jacinto, desesperado com tantos desastres humilhadores — as torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o vapor que se encolhia, a eletricidade que se sumia —, decidiu valorosamente vencer as resistências finais da matéria e da força por novas e mais poderosas acumulações de mecanismos. E nessas semanas de abril, enquanto as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquelas quietas casas dos Campos Elísios, que preguiçavam ao Sol, incessantemente tremeu, envolta num pó de caliça e de empreitada, com o bruto picar de pedra, o retininte martelar de ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era doce fumar antes do almoço um pensativo cigarro, circulavam agora, desde madrugada, os ranchos de operários, de blusas brancas, assobiando o Petit-Bleu, e intimidando os meus passos, quando eu atravessava em fralda e chinelas para o banho ou para outros retiros. Apenas se varava com perícia algum andaime obstruindo as portas — logo se esbarrava com uma pilha de tábuas, uma seira de ferramentas ou um balde enorme de argamassa.
       E os pedaços de soalho levantado mostravam tristemente, como num cadáver aberto, todos os interiores do 202, a ossatura, os sensíveis nervos de arame, os negros intestinos de ferro fundido. Cada dia estacava diante do portão alguma lenta carroça, de onde os criados, em mangas de camisa, descarregavam caixotes de madeira, fardos de lona, que se despregavam e se descosiam numa sala asfaltada, ao fundo do jardim, por trás da sebe de lilases. E eu descia, reclamado pelo meu Príncipe, para admirar uma nova máquina que nos tornaria a vida mais fácil estabelecendo de um modo mais seguro o nosso domínio sobre a substância. Durante os calores, que apertaram depois da ascensão, ensaiamos esperançadamente, para refrescar as águas minerais, a Soda-Water e os Medocs ligeiros, três geleiras, que se amontoaram na copa sucessivamente desprestigiadas. Com os morangos novos apareceu um instrumentozinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente. Depois recebemos outro, prodigioso, de prata e cristal, para remexer freneticamente as saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo o vinagre esparrinhou sobre os olhos do meu Príncipe, que fugiu aos uivos! Mas ele teimava... Nos atos mais elementares, para aliviar ou apressar o esforço, se socorria Jacinto da dinâmica. E agora era por intervenção de uma máquina que abotoava as ceroulas.

(Trecho de "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós)
VOCABULÁRIO
202: a casa de Jacinto.
ASCENSÃO: entrada da primavera.
CALIÇA: argamassa ressequida.
DESCOSER: descosturar.
EM FRALDA: só vestido de camisa comprida.
ESPARRINHAR: espirrar.
ESTACAR: parar.
GELEIRA: geladeira.
LIGEIRO: leve.
MEDOC: vinho dessa região francesa.
PETIT-BLEU: canção popular francesa.
RANCHO: grupo.
RETININTE: que retine, ruidoso.
SEBE: cerca.
SEIRA: saco.
SODA-WATER: refrigerante; soda.

20. Em um momento do texto, dando vivacidade e graça ao que descreve, Eça de Queirós faz uma comparação surpreendente entre um elemento humano e um não humano. Identifique essa passagem, apontando os elementos que são aproximados.
 
21. Que deve indicar, no texto, a palavra “geleiras” e que significa dizer que três delas tinham sido “sucessivamente desprestigiadas”?
 
22. A hipálage, figura de linguagem bastante utilizada por Eça de Queirós, consiste no deslocamento de um adjetivo do termo próprio para outro que esteja próximo. Há hipálage em um momento do texto: “fumar antes do almoço um pensativo cigarro”. Explique essa construção, indicando qual seria a frase “normal” e qual a função expressiva da hipálage no contexto.
 
As questões de números 23 a 26 baseiam-se no trecho de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós.
 
       Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do Bairro Latino — para onde me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me riscaram da universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de procissão, na Sofia, a cara sórdida do Dr. Pais Pita.
       Ora nesse tempo Jacinto concebera uma ideia... Este príncipe concebera a ideia de que o homem só é “superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E por homem civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde Aristóteles e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos inventados desde Teramenes, criador da roda, se torna um magnífico Adão quase onipotente, quase onisciente, e apto, portanto, a recolher dentro de uma sociedade e nos limites do progresso (tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proventos que resultam de saber e de poder... Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua ideia, quando conversávamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.
       Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo, que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a Batalha de Sadowa e a Batalha de Sedan e ouvindo constantemente desde então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a espingarda de agulha que vencera em Sadowa e fora o mestre de escola quem vencera em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da mecânica e da erudição. Um desses moços mesmo, o nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe facilitar a circulação e lhe condensar o brilho, a uma forma algébrica: suma ciência X suma potência = suma felicidade.

(Trecho de "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós)

23. Conforme o pensamento de Jacinto, que ganhou a forma algébrica desenvolvida por Jorge Carlande, a concepção de um homem superiormente feliz envolve
a) a dissimulação da força e da sabedoria.
b) a busca pela simplicidade.
c) o conhecimento e o progresso científico.
d) a dissociação entre progresso e filosofia.
e) o distanciamento dos preceitos filosóficos.
 
24. Se a civilização era enaltecida por Jacinto, era de se esperar que, para ele, a vida apartada do progresso
a) ficaria consideravelmente limitada, reduzindo-se à prática intelectual.
b) aguçaria a intelectualidade, ampliando a relação do homem com o saber.
c) daria espaço para o real sentido de viver e de tornar-se uma pessoa feliz.
d) equilibraria a relação do homem com o saber, permitindo-lhe ser pleno e feliz.
e) impediria a felicidade do homem, sem, contudo, influenciar a prática intelectual.
 
25. Considere as afirmações.
I. O Realismo surge num momento de grande efervescência do cientificismo. No texto, isso se comprova pelas referências à vida intelectual e ao desenvolvimento da sociedade do século XIX.
II. Um personagem como Fabiano, de Vidas Secas, conforme descrito no trecho — Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra — seria infeliz na óptica de Jacinto, apresentada no texto.
III. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Essas palavras de Dom Casmurro, na obra homônima de Machado de Assis, assinalam uma personagem preocupada com o desenvolvimento da erudição, candidata à felicidade postulada por Jacinto.
 
Está correto o que se afirma em
a) I apenas
b) II apenas
c) I e II apenas
d) II e III apenas
e) I, II e III
 
26. Leia os versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:
 
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar.
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
 
A leitura dos versos de Álvaro de Campos, comparativamente ao texto de Eça de Queirós, permite afirmar que
a) traduzem a nova ordem social, rechaçando as modificações advindas do cientificismo, atitude contrária à dos camaradas de Jacinto, que se deslumbravam com a modernidade.
b) apresentam a modernidade numa óptica positivista, fundamentada na observação e experimentação da realidade, o que contraria a visão romântica dos camaradas de Jacinto.
c) expressam, com certa reserva, os adventos da nova ordem social e tecnológica, ficando implícita a ideia dos camaradas de Jacinto, que eram pouco afeitos ao cientificismo.
d) fazem uma apologia da modernidade, de forma semelhante ao entusiasmo dos camaradas de Jacinto, deslumbrados com a nova ordem da vida urbana, social e tecnológica.
e) trazem uma visão apaixonada da realidade, portanto subjetiva e desprovida da observação e experimentação, atitude comum também aos camaradas de Jacinto.
 
27. Em “A Cidade e as Serras”, sabe-se que Eça de Queirós apresenta um esquema, sob a forma dialética, que se configura pelo confronto entre duas ideias — a tese e a antítese —, para se chegar, no final do livro, à síntese. Considerando esse esquema dialético, explique qual é a tese, a antítese e a síntese presentes no romance.

       Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!
       – Oh, Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
      Ele encolhia os ombros. A religião! A religião! A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno! Mas o telefone! O fonógrafo!
 
28. Assinale duas alternativas CORRETAS, considerando o excerto acima de “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós.
a) O diálogo sugere que a tecnologia desconfigura a existência de Deus, do Céu e do Inferno.
b) A discurso de Jacinto revela o ateísmo consequente do materialismo realista de Eça de Queirós.
c) O excerto deixa clara a religiosidade de Zé Fernandes.
d) Apesar da descrença, as palavras de Jacinto demonstram respeito à religiosidade.
e) Segundo Jacinto, o homem afirma a sua alma em suas criações.
 
   Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o saturava. O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em sondar e formular esse tédio – na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a comédia pouco divertida dum Melancólico que perpetuamente raciocina a sua Melancolia! Nesse raciocínio, ele partia sempre do fato irrecusável e maciço – que a sua vida especial de Jacinto continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveis no século XIX, numa vida de homem que não é um Gênio, nem um Santo. Com efeito! Apesar do apetite embotado por doze anos de Champanhes e molhos ricos, ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua inteligência não aparecera nem tremor nem morrão; a boa terra de Portugal, e algumas Companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre ativas e sempre fiéis o cercavam as simpatias duma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos; nenhuma amargura de coração o atormentava; - e todavia era um Triste. Por que? E daqui saltava, com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto – mas da Vida, do lamentável, do desastroso fato de Viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara no Pessimismo.

(Trecho do sétimo capítulo de A CIDADE E AS SERRAS)
BUREL – sentimento de luto, de pesar.
MORRÃO – cravagem, apodrecimento.

29. A respeito do excerto acima, assinale a alternativa incorreta.
a) 202 é o número da casa de Jacinto.
b) A letra maiúscula da palavra “Pessimismo”, no fim do excerto, dá a ela o sentido racional, filosófico.
c) O termo “embotado” pode ser substituído apropriadamente por “prejudicado”.
d) Para o narrador, Jacinto é sinônimo de “pinheiro bravo”, pinheiro selvagem, pinheiro do mato.
e) Segundo o narrador, Jacinto conclui que seu tédio tem origem no seu estilo de vida, não é próprio da condição humana.
 
30. O termo “chasqueadora” pode ser substituído apropriadamente por
a) barulhenta
b) castradora
c) cruel
d) violenta
e) zombeteira
 
31. Releia e aponte a alternativa incorreta a respeito deste período: “E daqui saltava, com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto – mas da Vida, do lamentável, do desastroso fato de Viver!”.
a) “amortalhada” é predicativo do objeto direto “a sua alma”.
b) “de Jacinto” é adjunto adnominal de “individualidade”.
c) “do desastroso fato” é objeto indireto do verbo “provinha”
d) em “mas da Vida” temos zeugma do verbo “provinha”.
e) “esse cinzento burel” é aposto à “tristeza”.

32. A palavra “Triste”, usada com inicial maiúscula, caracteriza na frase a figura de linguagem denominada
a) comparação (metáfora com conectivo de comparação)
b) hipálage (deslocamento de adjetivo para outro substantivo)
c) hipérbato (ordem indireta)
d) metáfora (comparação sem conectivo de comparação)
e) metonímia (uma parte que representa um todo)
 
33. Que função da linguagem predomina no excerto acima?
a) conativa (ou apelativa, focaliza a segunda pessoa)
b) expressiva (ou emotiva, concentra-se na primeira pessoa)
d) metalinguística (refere-se ao próprio texto)
e) poética (prioriza o aperfeiçoamento da linguagem)
c) referencial (ou informativa, foca a terceira pessoa)
 
       Ao outro dia, depois do almoço, eu e Jacinto montamos a cavalo para um grande passeio até a Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando todos no jardim a escolher uma bela rosa chá para a botoeira do meu Príncipe, a tia Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça, a caridade, e a doçura da sua sobrinha toda amada, que eu protestei:
       - Ó! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas à virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um desapontamento tremendo!
       E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava-me aquela manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela no meu quarto, e lhe chamara uma lavradeirona. Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datada do seu tempo de viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra. Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia – e a alma que nela se formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.

(Trecho do décimo quarto capítulo de A Cidade e as Serras)
FURÚNCULO – broto secundário da videira que desvia seiva dos ramos principais.
RUBICUNDO – avermelhado; corado.

34. Observe o período: “E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa”. O termo “casa” exemplifica uma figura de linguagem denominada
a) metáfora
b) metonímia
c) hipálage
d) hipérbole
e) homonímia
 
HIPÁLAGE: Em cada olho um grito castanho de ódio.
HIPÉRBOLE: Teus olhos chorarão rios de lágrimas.
HOMONÍMIA: No vale, a vida é o que vale.
METÁFORA: Horas são bolhas de sabão.
METONÍMIA: Duas mil cabeças pastam à beira do rio.
 
35. A respeito do excerto acima, assinale a alternativa incorreta.
a) Comparando duas épocas da prima Joaninha, o narrador opõe a rusticidade da primeira contra o amadurecimento da segunda.
b) Jacinto conhecera Joaninha, porém apenas em fotografia.
c) No mesmo dia em que rumaram para a fazenda Flor da Malva, tia Vicência elogiou hiperbolicamente a sobrinha Joaninha e o narrador se lembrou da manhã em que Jacinto a definiu como uma lavradeirona.
d) O narrador ironiza o descaso do tio Adrião, vencido pelo furúnculo que prejudica as videiras da fazenda Flor da Malva.
e) Zé Fernandes, o narrador, recusa a expectativa de que Joaninha impressione Jacinto.
 
36. Aponte a alternativa em que se encontra a melhor definição para a palavra “botoeira” – primeiro parágrafo.
a) casa de botão; fenda por onde passa o botão da calça ou da camisa.
b) criadouro de plantas.
c) granja; criação de galinhas botadeiras.
d) o mesmo que enamorada.
e) sinônimo de furúnculo.
 
37. No segundo parágrafo do excerto acima, predomina a função da linguagem denominada
a) conativa
b) expressiva
c) fática
d) metalinguística
e) referencial

38. Análise sintática do primeiro período do excerto. Aponte a alternativa incorreta.
a) “a cavalo” é adjunto adverbial de modo.
b) “Adrião” é aposto de “tio”.
c) “de meu tio” é adjunto adnominal.
d) “eu e Jacinto” é sujeito simples do verbo “montamos”.
e) “montamos” é verbo transitivo indireto com objeto indireto ("em cavalos") elíptico.
 
39. Análise morfológica do trecho “Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia”. Assinale a alternativa incorreta.
a) “e” é conjunção aditiva e juntos caracterizam a figura de linguagem denominada polissíndeto.
b) “entrava” é verbo da primeira conjugação, flexionado na terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do modo indicativo.
c) “já” é advérbio de intensidade.
d) “nos” é a fusão da preposição “em” com o artigo definido masculino plural “os”.
e) “vinte” é numeral cardinal.
 
       Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes – e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que recendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
       Sacudi violentamente Jacinto:
       – Acorda, homem, que estás na tua terra!
       Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
       – Então é Portugal, hem?... Cheira bem.
       – Está claro que cheira bem, animal!
       A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso, como se passasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.
       O meu Príncipe alargava os braços, desolado:
       – E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colônia!... entro em Portugal, imundo!
       – Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver os nossos confortos... Olha para o rio!
       Rolávamos na vertente duma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. Jacinto acariciava os pelos corredios do bigode:
       – O Douro, hem?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!

(Trecho do oitavo capítulo de “A Cidade e as Serras”)
PIPAS – recipientes bojudos, de madeira, para líquidos, especialmente vinhos.
RESEDÁ – ervas ricas em alcaloides, nativas da Europa e do Mediterrâneo à Ásia central, cultivadas como ornamentais, para extração de óleo essencial e de tintura amarela.
SOCALCOS – encostas, de morro ou de montanha, preparadas para a agricultura.

40. Identifique a alternativa que não corresponde ao que se afirma no excerto acima.
a) Jacinto é narrador personagem.
b) “Meu Príncipe” é uma das formas com as quais Zé Fernandes tratava Jacinto.
c) Os dois personagens estão chegando da França a Portugal.
d) No último parágrafo do excerto, Jacinto se refere ao Rio Douro, rio que corta o norte de Portugal.
e) O termo “comboio”, no primeiro parágrafo, refere-se ao trem de ferro.
 
41. Passe o discurso direto “– Acorda, homem, que estás na tua terra!” para o discurso indireto.
a) Acordava Jacinto dizendo que estava em sua terra.
b) Zé Fernandes acorda Jacinto quando diz que está em sua terra.
c) Acordei o homem dizendo que ele estava em tua terra.
d) Zé Fernandes acordou Jacinto dizendo que estava em sua terra.
e) Acordei Jacinto dizendo que ele estava em sua terra.
 
42. A respeito do excerto acima, assinale a alternativa incorreta.
a) A expressão “vela cheia”, no penúltimo parágrafo, diz que a vela do barco recebia bastante vento.
b) Na fala “– Está claro que cheira bem, animal!”, Zé Fernandes demonstra sua alegria com a constatação de Jacinto quanto ao cheiro de Portugal.
c) No início do penúltimo parágrafo, o vocábulo “rolávamos” é uma referência as rodas do trem de ferro.
d) No penúltimo parágrafo, o trecho “Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas” significa que as águas do rio corriam muito lentamente.
e) O termo “aguados”, do trecho “Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados” – primeiro parágrafo – pode ser substituído, sem prejuízo no sentido, por “ansiosos”.
 
43. No terceiro parágrafo, “– Acorda, homem, que estás na tua terra!”, temos um exemplo da função da linguagem reconhecida pelo nome
a) conativa (ou apelativa)
b) expressiva (ou emotiva)
c) fática
d) metalinguística
e) referencial
 
44. Na expressão “largo e doce silêncio”, no início do primeiro parágrafo, temos a incidência da figura de linguagem denominada
a) sinestesia
b) catacrese
c) hipálage
d) homonímia
e) silepse
 
45. ANÁLISE MORFOLÓGICA: “Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados” – Marque a alternativa incorreta.
a) “aguados” é adjetivo.
b) “azul” é substantivo.
c) “meus” é pronome possessivo.
d) “profundo” é substantivo.
e) “que” é pronome relativo.
 
46. ANÁLISE SINTÁTICA: “Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados” – Encontre a alternativa incorreta.
a) “andavam” é verbo de ligação.
b) “azul” é núcleo de sujeito.
c) “de” é regido pelo adjetivo “aguados”.
d) “que” é conjunção integrante.
e) “rebrilhava” é verbo intransitivo.
 
       Então, enquanto fumava o meu charuto, estranhamente se apossaram de mim os sentimentos que Jacinto outrora experimentara no meio da Natureza, e que tanto me divertiam. Ali, à porta do café, entre a indiferença e a pressa da cidade, também eu senti, como ele no campo, a vaga tristeza da minha fragilidade e da minha solidão. Bem certamente estava ali como perdido num mundo que me não era fraternal.
       Quem me conhecia? Quem se interessaria por Zé Fernandes? Se eu sentisse fome, e o confessasse, ninguém me daria metade do seu pão. Por mais aflitamente que a minha face revelasse uma angústia, ninguém na sua pressa pararia para me consolar. De que me serviriam também as excelências da alma, que só na alma florescem? Se eu fosse um santo, aquela turba não se importaria com a minha santidade; e se eu abrisse os braços e gritasse, ali no Boulevard: “Ó homens, meus irmãos!”, os homens, mais ferozes que o lobo de Agubio ante o Pobrezinho de Assis, ririam e passariam indiferentes.
       Dois impulsos únicos, correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem vivos naquela multidão – a do lucro, a do gozo. Isolada entre eles, e ao contágio ambiente da sua influência, em breve a minha alma se contrairia, se tornaria num duro calhau de egoísmo. Do ser que eu trouxera da Serra, composto com tolerável nobreza, só restaria esse calhau de egoísmo, e nele, vivos, os dois apetites da cidade – encher a bolsa, saciar a carne!
       E as mesmas exagerações de Jacinto ante a Natureza me invadiam aplicadas à cidade. Aquele Boulevard já me ressumava um bafo mortal, exalado dos milhões dos seus micróbios. De cada porta me parecia sair um ardil para me roubar. Em cada face avistada à portinhola de um fiacre, suspeitava um bandido trabalhando; todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só por dentro podridão.
       E considerava duma melancolia funambulesca cútis e formas de toda aquela multidão, a sua pressa esperta e vã, a afetação das atitudes, as imensas plumas das chapeletas, as expressões postiças e arranjadas, a pompa dos peitos alteados, o dorso redondo dos velhos olhando as imagens obscenas das vitrinas. Ah! tudo isto era pueril, mas assim eu sentia também que necessitava remergulhar na serra, para que ao seu puro ar me secasse e se me despegasse a crosta da Cidade, e eu ressurgisse humano, e Zé Fernândico!

(Trecho do décimo sexto capítulo de A Cidade e as Serras)
ARDIL – artifício, cilada, emboscada.
BOULEVARD – rua ou avenida arborizada e larga.
CAIADAS – pintadas com cal.
CALHAU – pedra, rocha.
CÚTIS – epiderme, pele, tez.
FIACRE – antiga carruagem de aluguel puxada por apenas um cavalo.
PUERIL – infantil, ingênuo.
TURBA – grande número de pessoas, multidão.

47. O termo “Zé Fernândico”, no fim do excerto, é
a) adjetivo formado por parassíntese.
b) substantivo formado por analogia.
c) pronome formado por aglutinação.
d) adjetivo formado por sufixação.
e) substantivo formado por justaposição.
 
48 – No período “Se eu sentisse fome, e o confessasse, ninguém me daria metade do seu pão”, no segundo parágrafo, o pronome “o” nos remete
a) à fome.
b) a ninguém.
c) ao narrador.
d) ao pão.
e) ao sentimento de fome.
 
49. A palavra “funambulesca”, no último parágrafo, pode ser substituída adequadamente por
a) ambulante.
b) carnavalesca.
c) chamuscada.
d) excêntrica.
e) fúnebre.
 
50. Aponte a alternativa incorreta, a respeito do excerto de A Cidade e as Serras.
a) A frase “mais ferozes que o lobo de Agubio ante o Pobrezinho de Assis” é comparação e referência ao episódio em que São Francisco de Assis tranquilizou um lobo faminto, na cidade de Agubio, na Itália, chamando-o de “meu irmão lobo”.
b) O narrador se julga realista quando maldiz a cidade, mas acusa Jacinto de exagero quando este maldizia o campo.
c) No trecho “necessitava remergulhar na serra, para que ao seu puro ar me secasse e se me despegasse a crosta da Cidade, e eu ressurgisse humano, e Zé Fernândico!”, o narrador afirma que a cidade desumaniza os indivíduos.
d) O termo “ressumava” compõe a imagem em que a cidade de Paris exalava um “bafo mortal” pouco a pouco, como se coasse ou filtrasse.
e) Zé Fernandes emprega a palavra “Serra” com inicial maiúscula porque não se refere a qualquer serra, mas tão somente à serra de Portugal em estão as fazendas onde residem ele e Jacinto.
 
51. O que os sentimentos de Zé Fernandes na cidade têm em comum com os sentimentos de Jacinto no campo?
 
52. Explique a alegoria imaginada por Zé Fernandes na frase “todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só por dentro podridão”.
 
53. Explique a concepção que o narrador oferece ao termo “Zé Fernândico”.
 
54. Em Paris, observando o comportamento da cidade, que virtude o narrador não vê na cidade, mas lhe é comum no campo?
 
55. Segundo o narrador, quais são os dois únicos objetivos que movem o homem urbano?
 
56. Compare os dois trechos abaixo e responda qual a diferença dos narradores na concepção do caráter dos indivíduos.
 
A CIDADE E AS SERRAS: “todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só por dentro podridão”.
 
O CORTIÇO: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”.
 
       Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras!
       Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os calcanhares, gritou: – “Aqui é que estamos, meus amos!” E ao fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da Quinta de Tormes, com o seu brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho, transpusemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra gasta, um homem nédio, rapado como um padre, sem colete, sem jaleca, acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Príncipe. Era o Melchior, o caseiro...
       Apenas me reconheceu, toda a boca se lhe escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe revelei, naquele cavalheiro de bigodes louros que descia da égua esfregando os quadris, o senhor de Tormes – o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante duma avantesma.
       – Ora essa!... Santíssimo nome de Deus! Pois então...
       E, entre o rosnar dos cães, num bracejar desolado, balbuciou uma história que por seu turno apavorava Jacinto, como se o negro muro do casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava S. Exª!... (Ele dizia sua incelência)... O sr. Silvério estava para Castelo de Vide desde março, com a mãe, que apanhara uma cornada na virilha. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o sr. Silvério só contava com S. Exª em setembro, para a vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul, ainda continuava sem telhas, muitas vidraças esperavam, ainda sem vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!...

(Trecho do oitavo capítulo de “A cidade e as serras”)
AVANTESMA – alma de outro mundo, fantasma.
AZINHEIRO – árvore de até dez metros, da família das fagáceas.
FAIAS – árvores de folhas ovaladas ou elípticas.
MELRO – ave passeriforme cujos machos são inteiramente negros, exceto pelo bico e pelo anel ao redor dos olhos, que são alaranjados.
NÉDIO – de aspecto brilhante, luzidio.
OLMO – árvore de folhas assimétricas, com nervuras bem marcadas.
PODENGO – cachorro sabujo, bajulador.
SEBES – cercas de plantas ou de arbustos e ramos secos para proteger vinhas e quintais.
SOLARENGO – que lembra ou se parece com um solar (casa de nobres).

57. O primeiro parágrafo do excerto é predominantemente
a) argumentativo
b) descritivo
c) dissertativo
d) epistolar
e) narrativo
 
58. No trecho “Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade” – segundo parágrafo – o termo “gravidade” pode ser substituído adequadamente por
a) atração
b) fascinação
c) sedução
d) seriedade
e) simpatia
 
59. No primeiro período do excerto, “Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho”, o adjetivo “frescos” anteposto ao substantivo “ramos” caracteriza qual figura de linguagem?
a) anáfora
b) anástrofe
c) hipérbato
d) personificação
e) sínquise
 
60. Ainda no primeiro período do excerto, o trecho adverbial “com familiaridade e carinho” exemplifica que outra figura de linguagem?
a) anáfora
b) catacrese
c) epístrofe
d) hipérbole
e) personificação
 
61. Quais funções da linguagem se combinam no trecho “vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade”?
a) conativa e fática
b) expressiva e conativa
c) fática e referencial
d) poética e metalinguística
e) referencial e expressiva
 
62. ANÁLISE MORFOLÓGICA – “Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade”. Aponte a alternativa incorreta.
a) “àquela” é pronome demonstrativo.
b) “encantara” é verbo da primeira conjugação, flexionado na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo.
c) “fidalga” é adjetivo.
d) “que” é pronome relativo.
e) “vagarosamente” é advérbio de modo.
 
63. ANÁLISE SINTÁTICA – “Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade”. Assinale a alternativa incorreta.
a) “àquela avenida de faias” é objeto indireto.
b) “de faias” é adjunto adnominal.
c) “me” é objeto indireto.
d) “pela sua fidalga gravidade” é adjunto adverbial de causa.
e) “que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade” é oração subordinada adjetiva explicativa.
 
64. Que nome se dá ao recurso literário caracterizado pelo termo “Sancho”, no segundo parágrafo do excerto, na frase “Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho”?
a) citação
b) intertextualidade
c) metalinguagem
d) paráfrase
e) paródia
 
65. Com base no primeiro parágrafo do trecho acima, contraponha os interesses de Zé Fernandes – o narrador – aos interesses de Jacinto – o protagonista – e os relacione ao título do romance, “A cidade e as serras”.
 
66. A partir da frase “Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho”, que relação se pode estabelecer entre Jacinto e Zé Fernandes com Dom Quixote e Sancho Pança?