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Nunca tive um namorado

       Carla desceu do ônibus, atravessou a rua. Tinha um rapaz na frente de sua casa, procurava o número.
      – Pois não.
      – Você mora aqui?
      – Sim.
      – Estou procurando uma costureira.
      – É minha tia, mas ela não está.
      – Demora?
      – Chega sempre depois das sete.
      – Posso esperá-la?
      – Claro. Entre.
      O rapaz entrou. Tinha um pacote nas mãos.
      – Encomenda?
      – Uma camisa.
      – Ela faz muito bem. Não sei se fará a sua. Está trabalhando para uma confecção.
      – E você?
      – O quê?
      – Costura?
      – Não. Trabalho no Correio.
      – Da Rua Matilde?
      – Não. Do Largo.
      – Você se parece muito com uma pessoa que conheço.
      – É?
      – Uma ex-namorada.
      – Gostava dela?
      – Muito.
      – Você faz o quê?
      – Trabalho no Banco do Estado.
      – Mora aqui perto?
      – Na Rua do Lavrador.
      – Você pega o mesmo ônibus que eu.
      – Pegava. Comprei uma moto na semana passada.
      – Que bom.
      – Se você quiser, passo por aqui quando for de manhã para o trabalho.
      – Você faria isso?
      – Por que não?
      – Toma um refresco?
      – Tomo.
      Carla saiu da sala para a cozinha. Desabotoou o primeiro botão da blusa. Trouxe uma jarra e dois copos.
      – Não está muito gelado.
      – Tem namorado?
      – Não.
      – Por quê?
      – Não sou uma mulher bonita.
      – O que é isso? Cada um tem o seu jeito de ser bonito.
      – Você acha?
      – Tenho certeza.
      – Tenho vinte e quatro anos. E você?
      – Vinte e seis.
      – Gosta de música?
      – Gosto.
      Carla escolheu um disco, ligou o aparelho. O rapaz trouxe os cabelos dela para trás, beijou a no ombro. A moça tinha os olhos apavorados, tremia.
      – Você gosta de mim?
      – Gosto.
      – Minha tia deve estar chegando.
      – Não tem problema.
      – Nunca tive um namorado.
      – Tem um agora.
      – O que você está fazendo?
      – Levante os braços.
      – Não posso.
      – Levante, rápido.
      – Tenho medo.
      – Isso.
      – O que você está olhando?
      – Tem os peitos mais bonitos que já vi.
      – Me abrace.
      Tinha uma boneca de olhos abertos na penteadeira. Parece que fechava os olhos, às vezes.
      – Não vai esperar minha tia?
      – Não. Ela está demorando.
      – Deve estar chegando.
      – Volto depois.
      – Você passa por aqui amanhã?
      – Amanhã, não. É feriado bancário.
      – E depois?
      – Talvez.

Qualquer um

       Era domingo. Elaine atravessou a avenida central e seguiu pela calçada do mercado. Os vendedores de peixe tomavam a rua. Depois os vendedores de artesanato. Elaine enfiava-se por entre as pessoas que se acumulavam diante dos comerciantes. Tinha pressa. Nas mãos uma presilha que tentava prender nos cabelos enquanto caminhava. Entrou na rua do colégio e desceu até o Terminal Norte. O cheiro de peixe impregnava os sentidos. No fim do terminal, entrou num hotel de quinta categoria. O recepcionista estava à porta. Elaine passou por ele.
       – A senhora deseja alguma coisa?
       – Não, obrigada!
       – A senhora não pode entrar...
       – Tente me segurar.
       Elaine subiu a escada sem diminuir a velocidade dos passos, quase correndo. No fim do corredor do segundo andar jogou todo o seu peso contra a porta do último quarto. Seu marido estava na cama em cima de uma mulher.
       – Era só pra ver a cara dela.
       Bateu a porta e fez o mesmo caminho de volta. Na rua do mercado, o marido tentou alcançá-la. Não conseguiu. Ela entrou primeiro em casa. Trouxe os cabelos para trás. Perdera a presilha. Deixou-se cair na cama e ficou olhando para o teto, que tinha uma única lâmpada no centro. O marido entrou.
       – O que deu em você? Ficou louca?
       – ...
       – Estou falando com você.
       – Não devia.
       – Está feliz? Matou a curiosidade?
       – Uma cadela.
       – Uma mulher.
       – Pra você.
       – O dinheiro. O dono do hotel está esperando.
       – A cadela paga.
       – Não foi ela quem quebrou a porta.
       – Não fui eu quem usou o quarto.
       – O dinheiro, Elaine. Quero o dinheiro.
       – Não tenho.
       Levantou-se da cama, abriu a janela. Os meninos brincavam no playground do prédio vizinho. Elaine sorriu.
       – O almoço está quase pronto.
       – É?
       – Meu marido deve estar com fome; trepou a noite inteira. Deve estar cansado. Por que você não vai embora e não volta mais?
       – Porque você precisa de mim.
       – É verdade. Ai nid iu. Mas hoje descobri que você é qualquer um. Então não preciso mais de você. Preciso de qualquer homem.
       – Dá o dinheiro. Depois vou embora.
       – Promete que não volta mais?
       – Prometo.
       Elaine saiu do quarto. Trouxe um cheque.
       – Tome.
       – É pouco.
       – Não tenho mais.
       Ele dobrou o cheque, enfiou-o no bolso, foi até a janela. Elaine esperava na porta.
       – Não vai embora?
       – Está falando sério? Quer mesmo que eu vá?
       – Quero.
       – Seu corpo está duro. Está nervosa?
       – Tem medo de ir?
       – Não. Mas tem uma coisa sobrando.
       – O quê?
       – Eu teria que odiar você.
       O cheiro de peixe. Elaine fechou a porta.
       – Não vai embora?
       – Não.
       – Está cansado?
       – Não.
       – Está.
       – Estou.
       – Mulher de zona dá canseira.
       – ...
       – Não é?
       – É.
       O dono do hotel bateu à porta. O marido o atendeu, deu-lhe o cheque. O homem sorriu, agradeceu, foi embora. Elaine estava outra vez na janela. O playground vazio.
       – Os meninos devem estar vindo para o almoço.
       – Vou buscar uns peixes.
       – Não. É melhor não. Tem carne cozida de ontem à noite.

Isso não é engraçado

       Sexta-feira à noite. Helena folheava uma revista para se distrair. Esperava um rapaz que devia chegar em quinze minutos. Olhava a porta, o telefone. Tocou a campainha.
       – Entre.
       Era um rapaz claro, de barba feita, vestira-se cuidadosamente. Sorriu assim que entrou.
       – Helena?
       – Sim.
       – Um bom apartamento.
       – Obrigada!
       – Sento-me?
       – Sim, claro. Sente-se. Desculpa!
       – Não tem por quê.
       – Estou um pouco nervosa.
       – Compreendo.
       – Bebe?
       – Guaraná.
       – Tem certeza?
       – Absoluta.
       – Está bem.
       – Tem mais alguém em casa?
       – Não. Moro só.
       – Tem uma torneira aberta.
       – Deve ser no banheiro. Vou fechá-la.
       Helena aproveitou para se olhar no espelho. É isso mesmo o que você quer? Está em tempo. É só dizer até logo, obrigada e fim. Seu rosto parecia bem mais velho. Era o rosto de uma mulher de quarenta e cinco anos que se trancava num apartamento, passava as noites nos livros. Quando acordava, era hora de almoçar e sair para o trabalho, bibliotecária. Dirigia um centro de estudos avançados em literatura. O rapaz na sala manuseava um livro, disse:
       – Tem bons livros.
       – Gosta?
       – Muito. Gostaria de ter sido escritor. Mas escolhemos muito pouco, não?
       – É verdade. Não temos muitas chances.
       – E mesmo assim somos obrigados a ser feliz.
       – Obrigados?
       – Tem jeito de não querer ser?
       – Um dia a gente não quer mais. Não liga mais pra isso. Nem acha que é possível.
       – Então é o fim.
       – E quem lhe disse que as coisas ficam para sempre no começo?
       – Não posso desistir de querer se feliz.
       – Isso é engraçado.
       – Talvez. Se você me olhar de outro lado, não. Você acha engraçado porque cheia de princípios e me olha como a um bandido. Tente inverter. Sou o mocinho e a você a vilã. Estou querendo ser feliz e você não me deixa. Você me telefona e paga pra eu ficar com você. Isso não é engraçado, mas venho. Porque pra mim é uma chance. Posso encontrar uma mulher bonita, que não é mais criança e que precisa de mim. Então venho, mas ainda não é engraçado. Seria se ríssemos de tudo e de nós mesmos. Se compreendêssemos que não é possível ser feliz ainda, mas já é possível não ser infeliz.
       – O senhor me parece bastante competente.
       – Não foi essa minha intenção.
       – Desculpa!
       O rapaz fechou o livro, olhou para o relógio.
       – Algum problema?
       – Vou embora. Depois a senhora telefona para a agência, pede outra pessoa.
       – Não. Quero ficar com você.
       Helena tinha o quarto muito bem preparado, tudo no lugar certo. Uma roupa de cama especial, o perfume que usava na adolescência, o lingerie de que mais gostava, as músicas que ouvia no pátio do colégio. Na verdade, era uma brincadeira. Não podia ser mais que isso. Fizeram amor sem qualquer cuidado. Sabiam que uma brincadeira só dá certo quando a gente brinca pra valer.
       – A senhora é uma mulher bonita. É estranho que pague.
       – É melhor assim.
       – Tenho que ir.
       – Está bem.
       À porta:
       – Foi a primeira vez?
       – Não.
       – É solteira?
       – Tive um marido. Morreu.
       – Ah!
       – E você?
       – Não tenho uma pessoa só pra mim.
       – Não?
       – Me telefona?
       – Não.
       – Posso telefonar?
       – É melhor não.

Das Dores

       Fala fina e desajeitada. Quer uma chance de não mais ser Das Dores do Cabaré. Aperta Arthur entre os braços enquanto no canto outros fazem o ritmo com triângulo, viola e acordeão. Das dores não se cansa. Pede a ele pra ficar um pouco mais e conversar o destino dos poeirentos. A respeito da fome e da desesperança. A respeito do preço da passagem do ônibus que vai pro sul. O conjunto parou de tocar. Devem estar indo pro sul. Todo mundo está indo pro sul, disse Das Dores. Você também está indo por sul? Perguntou Arthur.
       – Estou indo pra onde o senhor me levar.
       Das dores puxou Arthur a um dos quartos disponíveis ao fundo do cabaré. Beijou-lhe as mãos, o rosto, pediu um beijo na boca. Disse que seria dele. Tirou a blusa branca de poliéster e a deixou cair sobre o piso gasto de barro queimado. Tirou também o sutiã que mal lhe cobrei as mamas. Estirou-se na cama, apagou a luz, convenceu-se mais uma vez de que estava para ser salva. Bastava entregar-se àquele homem e ele a levaria para onde fosse. Chegara enfim sua vez. Abandonaria pra nunca mais os corpos fedorentos que sobre ela caíam todas as noites. Não mais teria que suportar os xingos asquerosos que surgiam dentre os dentes podres e espumados de Madame Ruth. Seria aquela a última das últimas noites de asco e indignação. Choraria cada vez que se lembrasse dos ratos e dos cães que a viram simular uma vida feliz entre quatro paredes sebosas e mal alinhadas. Acariciava o peito, as faces de Arthur. Seus dedos finos de tanto lavar cem vezes a mesma blusa percorriam insistentemente as margens de um sonho tantas vezes reeditado. Acossava-o entre suas coxas. Tem de haver alguém no mundo que não pode ser feliz sem suas coxas e seus cabelos lisos escorridos até o ombro. Procurava entre os lábios e as mandíbulas de Arthur uma palavra que a fizesse sorrir e matar de vez a ansiedade que a persegue desde os primeiros dias de sol e pó. Arthur tinha sob si um corpo inquieto, ofegante, gozando o que ela acreditava ser o derradeiro instante de uma vida excluída até dos mais ridículos prazeres. Era simultaneamente o fim e o começo. Era enfim o mais intenso desejo que nunca antes tivera. E dava-se por ele. Por fazê-lo vir à tona e justificar seus dias de amargura.
       Bateram à porta. Das dores pouco deu importância. Acostumara-se aos meninos que se empurravam para vê-la nua pelas frestas da porta ou da janela. Bateram novamente. Dessa vez mais forte. Eram batidas rápidas. Alguém chamou pelo seu nome. Era voz de homem. Das Dores se vestiu apressada; jogou o lençol sobre Arthur e esperou. Disse ainda num sussurro: é Fortunato. Viu perdidas as suas chances. Ele a perseguia e jurava matá-la caso o abandonasse. Era um homem feio. Não empenhava o menor esforço para se livrar de sua estupidez. Decerto não sabia que estava bêbado, pois bateu com o pé na altura da tramela. A porta se abriu fazendo-o cair desequilibrado. Arrastou-se pesado até o guarda-roupa em que se apoiou e lá se levantou com extrema dificuldade. Passou a mão pela fronte retirando o suor entre dedos, enquanto Das Dores segurava firme a mão de Arthur.
       – Ele vai me bater.
       O conjunto recomeçou a tocar. Fortunato cambaleou até o centro do quarto, tirou dos passantes da calça uma cinta de couro e foi até mais perto de Das Dores. Disse, puxando-a pelo braço.
       – Vem dançar comigo.
       Das Dores se livrou num arranco.
       – Eu não quero dançar.
       Fortunato, que quase caíra, rodou a cinta e bateu forte no rosto de Das Dores.
       – Vem dançar comigo, vagabunda!
       Das Dores não se conteve. Apanhou no criado-mudo um pente de cabo plástico pontiagudo e avançou contra Fortunato. Tentou furá-lo no umbigo. Não conseguiu. Tombaram os dois próximos à porta. Das Dores levantou-se rápida e fugiu para um canto do quarto. Fortunato pôs-se em pé com um fio de sangue escorrendo da boca. Dobrou a cinta, disse palavras de malquerer e partiu contra Das Dores. Ela não o esperou. Quis chorar, mas não chorou. Deixou escapar um grunhido em crescendo e apostou sua vida num último lance. Nessa vez, acertou. Jamais imaginou matar um homem. Matou. Fechou os olhos e voltou para o canto. Soluçando. Arthur cobriu o corpo com seu lençol. Não podia mirar o tempo todo um homem com um pente enfiado na garganta.
       Do quarto, ouviam-se as vozes do salão. Estava nelas a agressividade do sol e da fome. A encarnação do bruto indomável. A certeza de que só temos uma chance. E de que não podemos perdê-la por um instante de covardia.
       Arthur apanhara sua bolsa. Segurava o cordão de puxar a porta. Das Dores perguntou do seu canto.
     – O senhor não vai me levar?
    Ele não respondeu. Deixou cair o cordão e desapareceu no corredor a fora. O triângulo fazia o ritmo de “Asa Branca”.