Análise da música Anjos Tronchos, de Caetano Veloso.

ANJOS PÓS-MODERNOS

         O valor de uma obra não está somente naquilo que ela expressa ou na forma, está também nas reflexões inusitadas ou contemporâneas que ela consegue provocar.

         “Anjos Tronchos”, faixa do álbum “Meu Coco”, de Caetano Veloso, é uma dessas belas artes.

         O título já promete um antimaniqueísmo muito bem vindo nestes tempos de polarização. Os anjos e os demônios não são mais tão simples, porque nós e nosso mundo apresentamos configurações bem mais complexas que as motivações ulcerosas dos haters. Se nos séculos anteriores, o mocinho e o bandido estavam em duas pessoas; neste, o herói e o vilão estão no mesmo sujeito.

         Bill Gates e seus vizinhos, os anjos tronchos, aperfeiçoam e distribuem para o mundo seus aviões que despejam latas de alimentos e cápsulas explosivas de um céu azul windows. A banda é larga e é sua: faça o que puder, o que quiser, faça da sua vida o avesso de um filme que não se desprega de sua tela e, se sobreviver, pode até desavessar o seu curta numa Primavera Árabe.

         A internet é uma ferramenta usada para construir e destruir, como todas as outras. Na quinta estrofe, o compositor escorrega e se exclui do grupo dos intelectuais contemporâneos que consegue destacar as qualidades construtivas da mesma ferramenta que também destrói. Os “otários”, os webdependentes, os odiadores, os usuários fúteis não podem ser suficientes para a condenação das redes sociais.

         Bem além das revoluções levadas por Shoenberg, Webern e Cage, os webcanais têm promovido a inserção do cidadão simples na formação da cultura brasileira. No Cinema Novo, por exemplo, o diretor do filme se punha como porta-voz (e imagem) do homem anônimo; agora é o próprio sujeito comum que cria o seu canal de comunicação e reverbera suas ansiedades. Nunca houve um impulso tão volumoso e denso na evolução da democracia.

Não há culpados ou inocentes para o fato de Zuckerberg ou McCollum multiplicarem lucros. Isso é lei de mercado. Essa é a condição econômica do mundo contemporâneo e seus desdobramentos. O Caetano também ganha muito dinheiro por conta da internet. São fatores sociais cristalizados historicamente. Não há bom senso em protestar contra consequências.

A questão é: a maioria dos habitantes deste planeta estava intelectualmente preparada para as redes sociais? Os computadores domésticos e portáteis chegaram numa boa época?

Considerando a distância histórica e crescente entre quem tem mais e quem tem menos e, consequentemente, quem sabe mais e quem sabe menos, chegaria o momento em que surgiriam descobertas e invenções muito além da capacidade de autocontrole do grande público. E o pior é que chegou durante a mais grave crise moral da humanidade. E não é só uma triste coincidência: a mais grave crise moral tem tudo a ver com a extrema distância entre os mais e os menos escolarizados que se acotovelam na superfície de um planeta pequeno para mais de sete bilhões e setecentos milhões de humanos.

         A complexidade filosófica e sociológica causadora da mais grave crise moral é decorrente da enorme diversidade genética e cultural. Se não existem humanos idênticos, uma nova criança é mais um tipo humano e uma nova cultura. Somos cores que multiplicam seus tons. Não há novas cores. Os tons são tantos que distanciam tanto as cores que as antíteses se tocam pelas costas. Um círculo se fecha e se esparrama desordenadamente pela circunferência.

         Porque não podemos transferir a culpa do sujeito para a ferramenta, nem desacelerar o desenvolvimento das artes e das ciências para frear o distanciamento das antíteses, resta somente juntar coragens para encarar o problema em todo o seu esplendor e acreditar na solução.

         A internet é um mundo mágico, porque os usuários em geral não compreendem os processos tecnológicos para o trânsito de sons e imagens. A magia fascina e os oportunistas ansiosos pelo controle social se regalam. Os “palhaços líderes” perdem a vergonha de serem estúpidos, egoístas e cruéis, “no império” – nos Estados Unidos – “e nos seus vastos quintais” – inclusive no Brasil. Os retrógrados ressuscitam munidos com as tecnologias de comunicação. A quarta estrofe da música é dedicada furiosamente às fake news.

É difícil ver os avanços, porque são processuais. É fácil ver os estragos, porque são eventuais. Os prejuízos também são processuais, mas só os enxergamos quando explodem. Por isso não faltam razões para a tristeza.

Na sétima estrofe, “Um post vil poderá matar / Que é que pode ser salvação? / Que nuvem, se nem espaço há”. Veloso parodia os termos “salvar” e “nuvem”, do internetês, para denunciar que a “salvação” é virtual, mas a morte é real. Na estrofe seguinte, “Mas há poemas como jamais / Ou como algum poeta sonhou / Nos tempos em que havia tempos atrás”, certamente porque há dores como jamais.

Ora, se o mundo melhorou, também piorou; se estamos sorrindo mais, também estamos chorando demais. Tanto no habitat natural quanto no habitat social, para cada tese há uma antítese correspondente. A profunda crise moral desconstruiu a memória dos “tempos atrás”. No entanto, resiste alguma esperança.

A citação ritmicamente enfática de “Sem lenço, sem documento”, do próprio autor – “Eu vou, por que não?” – sublinha a perspectiva de um lado B. No último verso da letra “Miss Eilish faz tudo no quarto com o irmão” vibra a ideia de que a internet trouxe a liberdade aos artistas e cientistas. O escritor não precisa mais implorar a uma editora para a publicação do seu livro, como a compositora e cantora Billie Eilish não se viu obrigada a se ajoelhar para o dono de uma gravadora.

Não há mais uma oligarquia determinando o “bom gosto”: o que deve e o que não pode ser publicado. Diluiu a figura do editor na sociedade pós-moderna. O produtor de conteúdo é o seu próprio editor, cinegrafista, cenógrafo, operador de áudio. Possui um canal direto com o seu público. A periferia não tem mais que engolir os ídolos do centro consumidor.

O morro produz para o próprio morro. A favela gerencia financeiramente sua própria produção. A transformação é cultural e econômica. Se antes a propagação dos ritmos se dava do centro para a periferia, agora é da periferia para o centro. A patricinha está dançando funk. Trata-se de uma inversão radical: era fisicamente negativa, eletrônica; passou a ser positiva, protônica.

O conflito sociológico que acontece hoje não é mais que uma reação do centro produtor ao gosto da maioria, nem bom nem ruim. Não é mais que uma agonia da elite que sempre determinou os rumos e as velocidades das transformações culturais Você viu o AmarElo no Teatro Municipal?